terça-feira, 11 de abril de 2017

Racismo e ciência no Brasil pós-abolição (1888-1930)

por Augusto Buonicore

– Miscigenação e racismo: o branqueamento

O racismo brasileiro sempre foi eclético. Existiam duas grandes correntes que, muitas vezes, se intercruzavam. A primeira, racista-segregacionista, condenava toda e qualquer ideia de miscigenação racial. Essa, em geral, conduzia a uma visão pessimista sobre o futuro do Brasil. A segunda apostava suas fichas no processo de miscigenação, visando a solucionar o chamado problema negro. Esta, pelo contrário, tendia a ser mais otimista em relação às possibilidades futuras do país, enquanto integrante da civilização ocidental e cristã. O seu otimismo residia na esperança de que a miscigenação não levaria necessariamente à constituição de um povo degenerado (de pele escura), e sim de um povo superior, aos moldes europeus. Esta vertente foi dominante nos 30 primeiros anos do século XX.

João Batista de Lacerda, diretor do Museu Nacional e representante brasileiro no I Congresso Universal de Raças, realizado na cidade de Londres em 1911, expressou de maneira exemplar esse segundo tipo de racismo – um racismo verdadeiramente à brasileira. Na sua famosa conferência afirmou: “já se viram filhos de métis (mestiços) apresentarem, na terceira geração todos os caracteres físicos da raça branca” e por isso seria “lógico esperar que no curso de mais um século tenham desaparecido do Brasil. Isso coincidirá com a extinção paralela da raça negra em nosso meio”. Dois anos depois um conceituado político e escritor paulista chamado Martins Francisco Ribeiro de Andrade escreveu: “Em São Paulo, por exemplo, graças ao clima e a uma série de fatores antropológicos, o sangue negro desaparecerá na quinta geração”.

Imediatamente se instaurou uma polêmica entre políticos, cientistas e empresários brasileiros. Muitos consideraram que a previsão do representante brasileiro era muito pessimista. Cem anos era muito tempo para a eliminação completa dos negros. Outros achavam a previsão demasiadamente otimista. Silvio Romero apostou que levaria ainda “uns seis ou oito (séculos), se não mais” para extinção do elemento negro na sociedade brasileira. No entanto, para todos eles, o desaparecimento dos negros seria apenas uma questão de tempo. O branqueamento era um processo irreversível – caso se impedisse a entrada de mais negros no país e continuassem sendo mantidos os altos índices de mortalidade desse segmento da população.

Um visitante ilustre, o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt, que esteve entre nós entre 1913 e 1914, escreveu: no Brasil, “o ideal principal é o do desaparecimento da questão negra pelo desaparecimento do próprio negro, gradualmente absorvido pela raça branca (…). A enorme imigração europeia tende, década a década, a tornar o sangue preto um elemento insignificante no sangue de toda a nação. Os brasileiros do futuro serão, no sangue, mais europeus ainda do que o foram no passado”. Buscando não ferir a suscetibilidade das elites brasileiras, ele reprovou a ideia de que o brasileiro fosse um povo de negros e mestiços, pois ele na verdade seria “um povo branco, pertencente à raça do mediterrâneo (…), às grandes e velhas raças civilizadas dos espanhóis e italianos”. Talvez aqui ele cometesse um erro bastante comum entre os presidentes norte-americanos: confundir o Brasil com a Argentina.

Mas, se errou quanto ao país acertou em cheio ao definir a ideologia racial dominante por aqui. Notou que esse processo de branqueamento era “aplaudido calorosamente pelos mais autorizados estadistas do país”. Em conversa com um deles ouviu uma crítica à política segregacionista norte-americana: “Vocês dos Estados Unidos conservam os negros como elemento inteiramente separado (…). Permanecerão como ameaça à sua civilização, ameaça permanente e talvez, depois de mais algum tempo, crescente. Entre nós a questão tende a desaparecer porque os próprios negros tendem a desaparecer e ser absorvidos (…). Não tenho por perfeita a nossa solução, mas julgo-a melhor que a sua”.

Outro observador norte-americano, crítico da segregação racial existente em seu país, escreveu, comovido, sobre a original experiência brasileira: “Uma honesta tentativa está sendo feita aqui para eliminar os pretos e pardos pela infusão do sangue branco (…). Este país revelará um dia ao mundo inteiro o único método existente de interpenetração racial, o único que evitará guerras raciais e derramamento de sangue”. Um dos personagens do romance A Esfinge, de Afrânio Peixoto, publicado no mesmo ano do I Congresso Universal Sobre as Raças, afirmava: “Em trezentos anos mais, seremos todos brancos; não sei que será dos Estados Unidos, se a intolerância saxônia deixar crescer, isolado, o núcleo compacto de seus doze milhões de negros”. Para esse mesmo personagem o futuro do Brasil seria radioso, pois “pertenceria a um povo sentimental e inteligente, digno dessa terra e do tempo em que vive”. Essa qualidade moral seria fruto da miscigenação, mas esse povo de grandes qualidades deveria, necessariamente, ser branco.

Existiam também ideólogos do branqueamento que apostavam suas fichas na imigração europeia e viam com desconfiança a miscigenação. Azevedo Amaral – ideólogo do Estado Novo – era um deles. Mesmo após 1937 escreveria: “A entrada de correntes imigratórias de origem europeia é realmente uma das questões mais importantes na fase de evolução que atravessamos e não há exagero afirmar-se que o número de imigrantes da raça branca que assimilarmos nos próximos decênios depende literalmente o futuro da nacionalidade (…). É claro que somente se tornará possível assegurar a vitória étnica dos elementos representativos das raças e culturas da Europa se reforçarmos o fluxo continuo de novos contingentes brancos”. Isso representaria um “reforçamento de valores étnicos superiores de cujo predomínio depende as futuras formas estruturais da civilização brasileira”.

Entretanto, já no início do século XX, alguns intelectuais lúcidos submeteram o racismo de nossas elites a uma crítica mordaz, entre eles Manuel Bomfim. O intelectual sergipano escreveu: “Tal teoria (racista) não passa de um sofisma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à exploração dos fracos pelos fortes”. Afirmações como estas explicam por que um pensador tão avançado tenha sido marginalizado pelas elites políticas e intelectuais da época, que desposavam teorias anticientíficas assentadas em preconceitos sociais e de classe.

O crescimento de uma consciência antifascista na segunda metade da década de 1930 e a derrota das potências do eixo em 1945 – e a consequente expansão dos ideais democráticos e socialistas – não acabaram definitivamente com o racismo, mas puseram uma pá de cal na tentativa de dar-lhe uma base cientifica.

Referências
BUONICORE, Augusto Cesar. Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros. São Paulo: Editora Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2009.
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MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
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RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1976.
RUY, José Carlos. “O sonho racista de um povo branco”. in Colunas, portal Vermelho
SCHWARCS, Lilia Moritz. O espetáculo da raça: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo:  Companhia das Letras, 2005.
________________. “As teorias raciais, uma construção histórica de finais do século XIX: O contexto brasileiro”, in SCHWARCS, L. M. e QUEIRÓS, Renato da Silva. Raça e diversidade. São Paulo: Edusp, 1996.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco – Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial, verbete Conde de Gobineau, Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
* Este texto é parte do 5º capítulo do livro “Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros”, obra publicada pela Editora Anita Garibaldi e Fundação Maurício Grabois em 2009. Publicado em http://www.grabois.org.br/portal/artigos/153339/2017-02-20/racismo-e-ciencia-no-brasil-pos-abolicao-1888-1930.
** AUGUSTO BUONICORE é historiador, presidente do Conselho Curador da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros, Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

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