Zangados com movimento que denuncia golpe, “Estadão”
e Demétrio Magnoli expõem precariedade intelectual e apelo a artifícios
argumentativos primários
Por Jocelito Zalla
Um capítulo triste para a história da mídia impressa brasileira foi recentemente escrito por O Estado de S.Paulo.
No dia 14 de junho, o jornal publicou editorial, intitulado “O lugar de
Dilma na História”, que condena a participação de historiadores no
movimento em defesa da democracia. Não nesses termos, evidentemente. A
histórica relação do periódico com grupos políticos conservadores, e o
poder econômico que eles representam, não é nenhum segredo. Seus
malabarismos verbais para esconder a realidade também não são novos. No
dia 2 de abril de 1964, por exemplo, o jornal noticiava o golpe militar
que iniciou a última ditadura brasileira com a seguinte manchete:
“Vitorioso o movimento democrático”. Mas talvez seja inédito um ataque
tão explícito a profissionais que estudam o passado.
No cerne desse ataque encontra-se uma disputa pela
imagem social da disciplina acadêmica e escolar de História, incluindo a
definição do lugar dos historiadores na sociedade.
Memória e ideologia no editorial do Estadão
Há, pelo menos, três tipos de artifícios empregados na
ofensiva contra o movimento “Historiadores pela Democracia”: a
autolegitimação do emissor (autor/veículo do texto), a desqualificação
do oponente/objeto do ataque; a deturpação da realidade. Em todos os
níveis do discurso, o editorial do Estadão apela a representações
equivocadas do senso comum. Como lembrou Pierre Bourdieu, a ideologia é
“uma ilusão interesseira, sem deixar de ser bem fundamentada”. Ou,
dizendo de outra forma, socialmente ancorada em verdades aparentes.
O texto começa e termina com a primeira estratégia.
Afirma um autor supostamente iniciado na historiografia profissional,
que cita, de maneira descontextualizada, um dos fundadores da chamada
Escola dos Annales na França, Marc Bloch. Esquece, no entanto, que o
“grande mestre desse ofício”, nas palavras do próprio editorial, se
envolveu com a luta política de seu tempo (um dos alegados crimes dos
historiadores brasileiros, como veremos), defendeu a democracia e foi
fuzilado por tropas nazistas em 1944. Esse tipo de dado biográfico,
assim como uma leitura densa da obra de Bloch, evidentemente não
interessa ao Estadão. A referência é apenas um recurso de
autoridade. Tão frágil, vale dizer, quanto sua descrição da tarefa dos
historiadores: “reconstituir o passado para entender o que somos no
presente”. Aqui predomina a visão ultrapassada da história-memória
pré-acadêmica, que enxerga no passado uma entidade autônoma e absoluta,
passível de reconstituição factual neutra. Não é preciso demonstrar que
esse passado apresentado como puro — “a História como realmente
aconteceu”, na fórmula do historiador alemão oitocentista Leopold von
Ranke — é sempre uma seleção daquilo que interessa ser lembrado pelo seu
defensor. Uma interpretação que esconde a operação interpretativa que a
gerou.
A segunda estratégia, a da desqualificação do movimento,
começa pela alegação de que os profissionais da área não estão
cumprindo seus deveres, ao privilegiar sua “militância”. Assim, o texto
advoga um isolamento do historiador de seu entorno social,
principalmente da atividade política. Essa construção do editorial seria
apenas mais uma visão positivista ingênua e simplista do trabalho
intelectual, se não fosse também uma artimanha ideológica comum na
disputa política atual: criminalizar as posições consideradas de
esquerda, ao mesmo tempo em que se apresentam posições de direita como
verdades universais incontestáveis e, no limite da dissimulação,
apartidárias. É o mesmo mecanismo utilizado por políticos profissionais
de direita para surfar na atual rejeição pública da atividade política,
quando esses atrelam os problemas de corrupção no país ao Partido dos
Trabalhadores e creditam a crise econômica às opções de governo próximas
da pauta da esquerda (como os programas sociais e os investimentos em
setores como o da cultura), ao invés das políticas monetárias recessivas
adotadas por Dilma em resposta às suas próprias demandas; políticas de
austeridade reforçadas e aprofundadas por Temer no governo provisório,
vale lembrar. Dessa maneira, historiadores reconhecidos
internacionalmente por trabalhos rigorosos de pesquisa são apresentados
pelo editorial como agentes do “lulopetismo” ou “intelectuais a serviço
de partidos que se dizem revolucionários”. Forçando ainda mais a nota, o
Estadão afirma que os historiadores profissionais são “incapazes
de aceitar a democracia”, reduzida pelo periódico ao respeito à
Constituição. Como se os historiadores não estivessem se apoiando,
também, na Constituição Cidadã de 1988. Como se a democracia fosse
apenas uma questão de legislação, não de voto e de soberania popular
(todo regime autoritário recente, aliás, conta com uma carta
constitucional).
A terceira estratégia é ainda mais preocupante, pois
revela o baixo nível intelectual e a falta de compromisso profissional
da empresa com a atividade jornalística. Acusando os historiadores de
prescreverem uma versão conspiratória da história, o Estadão
constrói uma narrativa mirabolante de conquista das almas. Para começar,
haveria nas escolas e nas universidades a imposição de “pensamento
único”. Entrincheirados na academia, os historiadores teriam a missão de
fazer crer que o PT transformou o Brasil no país da justiça social. Com
o advento da operação Lava-Jato e o início do impeachment de Dilma
Rousseff (outro serviço prestado à desinformação, como se pesasse alguma
denúncia de corrupção contra a presidenta no processo de impedimento),
caberia a eles fazer vencer a tese do golpe. O que os historiadores
ganhariam com isso? Segundo o Estadão, “a glória de ditar os termos da história”. Delírio e difamação pura e simples.
Não é preciso muito para mostrar que a fábula do
pensamento único não se sustenta. A universidade, como instituição, é
principalmente um espaço de debate. O campo historiográfico é pautado
por regras sólidas de construção de conhecimento (como a crítica das
fontes, a definição refletida de problemas de investigação, a seleção
adequada de teorias e conceitos explicativos, a pesquisa empírica
exaustiva), sempre passível de confirmação e de revisão. Não é o plano
do vale-tudo narrativo, muito menos de imposição de visões
unidimensionais. Quanto ao suposto compromisso dos historiadores com o
governo petista, basta lembrarmos que houve duas grandes greves de
professores universitários nos últimos anos (em 2012 e 2015), com grande
envolvimento da área de História. Além disso, muitos historiadores
estão na linha de frente da crítica à política econômica da era PT,
junto a sociólogos e economistas progressistas. Por fim, a justificativa
para a ação dos historiadores soa patética. É óbvio que esses não
possuem o monopólio da representação do passado, mas o aparato
científico e institucional no Brasil, hoje, dá sustentação e
legitimidade à história dos historiadores profissionais. E nunca, na
história da historiografia brasileira, houve tanta autonomia no trabalho
do historiador. Aí residem duas das grandes insatisfações do Estadão.
O cerco ao pensamento livre e à educação crítica
O ataque do Estadão, portanto, se baliza em
pressupostos da memória histórica refutados pelos historiadores
profissionais contemporâneos, mas que ainda ecoam no senso comum (como
noções simplistas de verdade e de passado). Dessa forma, cumpre sua
função político-ideológica: deturpa a realidade para fazer valer seus
interesses. Cabe tudo na tarefa. Inclusive a contradição. Logo no início
do editorial, há a afirmação de que o “lulopetismo” posicionou bem os
historiadores na academia, lugar de onde eles pretendem difundir sua
versão dos fatos. Mais adiante, diz que o patrulhamento dos
historiadores engajados tem levado ao isolamento dos colegas
dissidentes, justamente, nas universidades, “como se fossem doentes cujo
contato se deveria evitar”. O contrassenso seria até risível, se não
demonstrasse a trágica pobreza argumentativa de um dos maiores jornais
em circulação no Brasil.
Não é possível levar o editorial do Estadão a
sério. Mas acredito que ele não tenha a ambição de ser considerado com
seriedade. Aí mora todo o perigo. Como artefato ideológico, procura,
antes de tudo, disseminar preconceitos políticos e, mais do que nunca,
reforçar o cerceamento às vozes que denunciam o processo de (re)tomada
do poder pelas forças mais conservadoras do país. Por isso ele precisa
ser desconstruído. É esse tipo de discurso que tem buscado coibir as
demandas sociais e a possibilidade de efetivação da democracia
brasileira, com mais avanços nas conquistas das classes trabalhadoras
rurais e urbanas, dos movimentos feminista, negro, LGBT e ecológico. É
esse tipo de discurso que tem pavimentado a aceitação pública de
projetos de censura à educação, como o “Escola Sem Partido”. A tentativa
de retirar os historiadores (e outros intelectuais) do espaço público,
ou de deslegitimar sua atuação para além da academia, é só o começo de
um processo mais amplo de restrição das liberdades de pensamento e de
expressão.
Na esteira do editorial do
Estadão, por exemplo, que recebeu contraponto de diversos historiadores,
o geógrafo Demétrio Magnoli publicou artigo na Folha de São Paulo,
no dia 25 de junho, criminalizando o movimento, rotulado por ele de
“quadrilha”. O novo ataque segue estratégias muito semelhantes às do
primeiro. Afirma conhecer o ofício do historiador, supostamente violado
pelos profissionais que se posicionam no debate público atual, e o
define de maneira (neo)positivista como “reconstrução da trama dos
eventos”. Chega, ainda, a indicar “vocação totalitária” na iniciativa do
grupo, que excluiria do universo democrático os historiadores não
alinhados. Recurso retórico para esvaziar o sentido do nome adotado pelo
movimento e desacreditar os seus propósitos. Logo se alcança a razão
mais profunda de seu texto, lutar pela classificação social do processo
político atual, minando a compreensão de que o impeachment é um golpe
político contra a presidenta eleita Dilma Roussef e o sistema
democrático brasileiro: “Eles decidiram (ou, de fato, o Partido decidiu)
que o impeachment é ‘golpe’ – e isso, antes mesmo da deliberação final
do Senado”, diz Magnoli.
* * *
Como sabemos, o golpe de 1964 foi chamado, por muito
tempo, de “Revolução”. E, para legitimar o episódio, agentes da mídia da
época encontraram até mesmo uma dose de “democracia” nas motivações dos
militares. Disputar a representação da história, portanto, é
fundamental para o pensamento autoritário com o qual, mais uma vez, o Estadão
(e parcela majoritária da grande mídia brasileira), se imiscui, na
media em que ela justifica determinados projetos políticos para o
presente.
Nesse contexto, o lugar dos historiadores só pode ser o da resistência.(fonte: http://outraspalavras.net/brasil/a-velha-midia-incomodada-com-os-historiadores/)
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