No Oriente Médio, Estados independentes desmoronam. Guerras,
políticas neoliberais e desigualdade extrema aceleram o processo. Mas e
se o fenômeno tornar-se global?
Por Patrick Cockburn | Tradução: Cauê Seignemartin Ameni e Inês Castilho
Vivemos numa era de desintegração. Em nenhum lugar isso é mais
evidente do que no Oriente Médio e na África. De lado a lado da vasta
faixa de território entre o Paquistão e a Nigéria, há pelo menos sete
guerras acontecendo – no Afeganistão, Iraque, Síria, Iêmen, Líbia,
Somália e Sudão do Sul. Esses conflitos são extraordinariamente
destrutivos. Despedaçam os países onde estão ocorrendo, a ponto que é de
se duvidar se algum dia poderão recuperar-se. Cidades como Aleppo, na
Síria; Ramadi, no Iraque; Taiz, no Iêmen; e Benghazi, na Líbia, foram
reduzidas a ruínas, em parte ou totalmente. Há também pelo menos três
outras sérias conflagrações: no sudeste da Turquia, onde as guerrilhas
curdas estão combatendo o exército turco; na península do Sinai, no
Egito, onde atua uma guerrilha pouco divulgada, porém feroz; e no
nordeste da Nigéria e países vizinhos, onde o Boko Haram continua a
fazer ataques assassinos.
Todos têm algumas coisas em comum: são intermináveis, e parecem nunca
produzir vencedores ou perdedores definitivos. (O Afeganistão está em
guerra desde 1979 e a Somália, desde 1991). Envolvem a destruição ou o
desmembramento de nações unificadas, sua divisão de facto entre movimentos de massa da população e insurreições – bem divulgados
no caso da Síria e do Iraque, e menos em lugares como o Sudão do Sul,
onde mais de 2,4 milhões de pessoas foram deslocadas nos últimos anos.
Some-se a isso mais uma semelhança, não menos crucial, embora óbvia:
na maioria desses países, nos quais o Islã é a religião dominante,
movimentos salafistas extremistas, entre eles o Estado Islâmico (ISIS), a
Al-Qaeda e o Talibã, são essencialmente os únicos canais disponíveis
para protestos e rebeliões. No momento, substituíram inteiramente os
movimentos socialistas e nacionalistas que predominaram no século 20. Os
últimos anos viram um significativo retorno à identidade religiosa,
étnica e tribal, por movimentos que buscam estabelecer seu próprio
território exclusivo pela perseguição e expulsão de minorias.
No processo, e sob pressão de intervenção militar externa, uma vasta
região do planeta parece estar sendo cindida. Há muito pouco
entendimento desses processos em Washington. Um bom exemplo disso foi o
recente protesto de 51 diplomatas do departamento de Estado, contrários à
política do presidente Barack Obama para a Síria e a sugestão de que
sejam lançados ataques aéreos contra as forças do regime sírio,
acreditando que o presidente Bashar al-Assad iria assim cooperar com um
cessar fogo. A abordagem dos diplomatas mantém-se tipicamente simplória,
num conflito extremamente complexo, ao acreditar que o bombardeio de
áreas civis e outros atos impiedosos do governo sírio são a “causa raiz
da instabilidade que continua a sufocar a Síria e a região mais ampla”.
É como se a mente desses diplomatas estivesse ainda na era da Guera
Fria, como se eles ainda estivessem lutando contra a União Soviética e
seus aliados. Contra todas as evidências dos últimos cinco anos,
assume-se que uma oposição síria moderada, que mal sobrevive, seria
beneficiada pela queda de Assad. Falta entender que a oposição armada na
Síria é inteiramente dominada pelos clones do Estado Islâmico e da
al-Qaeda.
Embora admita-se amplamente, hoje, que a invasão do Iraque em 2003
foi um erro (mesmo por aqueles que a apoiaram à época), não se
aprenderam as verdadeiras lições. Por que todas as intervenções
militares, diretas ou indiretas, dos EUA e seus aliados no Oriente
Médio, no último quarto de século, apenas exacerbaram a violência e
aceleraram a falência do Estado?
Extinção em massa de estados independentes
O Estado Islâmico (ISIS), que acaba de comemorar seu segundo
aniversário, é o resultado grotesco desta era de caos e conflitos. A
simples existência dessa seita hedionda é um sintoma do profundo
deslocamento sofrido pelas sociedades de toda a região, governada por
elites corruptas e desacreditadas. O crescimento do ISIS – e o de vários
clones do estilo Talibã e Al-Qaeda – é uma medida da fraqueza de seus
opositores.
O exército e forças de segurança do Iraque, por exemplo, tinham 350
mil soldados e 660 mil policiais, segundo os registros, em junho de
2014, quando alguns poucos milhares de combatentes do Estado Islâmico capturaram
Mossul, segunda maior cidade do país, que ainda dominam. Hoje, o
exército iraquiano, os serviços de segurança e cerca de 20 mil
paramilitares xiitas, apoiados pelo poder de fogo maciço dos Estados
Unidos e forças aéreas aliadas, abriram
caminho a bala até a cidade de Faluja, cerca de 60 quilômetros a oeste
de Bagdá, contra a resistência de não mais que 900 combatentes do ISIS.
No Afeganistão, o ressurgimento do Talibã, supostamente derrotado em
definitivo em 2001, aconteceu menos em razão da popularidade do
movimento do que pelo descaso com que os afegãos viam o governo corrupto
de Cabul.
Os estados-nação estão depauperados ou desmoronando em todos os
lugares, enquanto líderes autoritários lutam pela sobrevivência frente a
crescentes pressões, externas e internas. Esse não é, de modo algum, o
modo como se esperava que se desse o desenvolvimento da região. Os
países que escaparam do domínio colonial na segunda metade do século 20,
com o passar do tempo, deveriam tornar-se mais e não menos unificados.
Entre 1950 e 1975, líderes nacionalistas assumiram o poder em grande
parte do mundo anteriormente colonizado. Prometeram alcançar
autodeterminação nacional criando estados independentes poderosos, por
meio da concentração de todos os recursos políticos, militares e
econômicos disponíveis. Em vez disso, no decorrer das décadas muitos
desses regimes transformaram-se em estados policiais controlados por um
pequeno número de famílias surpreendentemente ricas, e uma camarilha de
empresários dependentes de suas conexões com líderes como Hosni Mubarak,
no Egito, ou Bashar al-Assad, na Síria.
Nos últimos anos, esses países foram também abertos ao furacão do
neoliberalismo, que destruiu qualquer contrato social rudimentar que
existia entre os governantes e os governados. Veja a Síria. Lá, vilas e
cidades rurais que em algum momento apoiaram o regime do partido Baath
da família al-Assad, porque proporcionou empregos e manteve baixos os
preços dos produtos básicos, foram depois de 2000 abandonados às forças
do mercado, distorcidas em favor daqueles que estão no poder. Esses
lugares foram a espinha dorsal da rebelião pós 2011. Ao mesmo tempo,
instituições como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(OPEP), que tanto fez para aumentar a riqueza e o poder dos produtores
de petróleo da região nos anos 1970, perderam a capacidade de agir
unificadamente.
A questão do momento é: por que uma “extinção em massa” de estados
independentes está acontecendo no Oriente Médio, no Norte da África e
região? Os políticos e a mídia ocidentais referem-se frequentemente a
esses países como “estados fracassados”. O sentido que esse termo
implica é que o processo é autodestrutivo. Mas vários estados agora
rotulados de fracassados, como a Líbia, reduziram-se a isso somente
depois que movimentos de oposição, apoiados pelo Ocidente, tomaram o
poder com o apoio e a intervenção militar de Washington e da OTAN, e
mostraram-se muito fracos para impor seus próprios governos centrais e o
monopólio da violência no território nacional.
O processo começou, em vários sentidos, com a intervenção no Iraque
pela coalizão liderada pelos EUA, em 2003, que levou à queda de Saddam
Hussein, ao fechamento do Partido Baath e à dissolução de seu exército.
Qualquer que sejam seus erros, Saddam e o autocrático governante da
Líbia, Muammar Gaddafi, foram claramente demonizados e acusados pelas
diferenças étnicas, sectárias e regionais dos países que governavam —
forças estas que foram, na verdade, liberadas de modo cruel depois de
suas mortes.
Há, contudo, uma pergunta que não quer calar: por que a oposição à
autocracia e à intervenção do Ocidente assumiu a forma islâmica, e por
que os movimentos islâmicos que acabaram por dominar a resistência
armada no Iraque e na Síria, em particular, toram tão violentos,
regressivos e sectários? Colocado de outra forma, como poderiam esses
grupos encontrar tantas pessoas querendo morrer por suas causas,
enquanto seus opositores encontraram tão poucas? Quando os grupos de
combate do ISIS estavam varrendo o norte do Iraque, no verão de 2014,
soldados que haviam jogado fora suas armas e uniformes, e desertaram
daquelas cidades do norte do país, justificaram sua revoada dizendo com
desdém: “Morrer pelo [então primeiro ministro Nouri] al-Maliki? Jamais!”
Uma explicação usual para o crescimento dos movimentos de resistência
islâmica é que a oposição socialista, secular e nacionalista foi
esmagada pelas forças de segurança dos velhos regimes, ao contrário dos
islâmicos. Em países como a Líbia e a Síria, contudo, os islâmicos
também foram perseguidos com selvageria, e apesar disso dominaram a
oposição. Mesmo assim, embora esses movimentos religiosos tenham sido
suficientemente fortes para opor-se aos governos, eles geralmente não se
mostraram fortes o suficiente para substituí-los.
Muito fracos para vencer, muito fortes para perder
Embora haja, claramente, muitas razões para a desintegração atual dos
estados, e elas sejam de alguma forma diferentes de lugar para lugar,
uma coisa é certa: o fenômeno está se tornando uma regra em vastas
regiões do planeta.
Se você está procurando as causas da falência do estado nos dias que
correm, deve sem dúvida começar pelo fim da Guerra Fria, um quarto de
século atrás. Uma vez encerrada, nem os EUA, nem a nova Rússia que
emergiu da implosão da União Soviética tinham interesse significativo em
continuar apoiando “estados fracassados”, como fizeram durante tanto
tempo, por medo de que o superpoder rival e seus aliados locais
pudessem, então, tomar o poder. Antes, líderes nacionais de regiões como
o Oriente Médio eram capazes de manter seus países com certa
independência, equilibrando-se entre Moscou e Washington. Com a
dissolução da União Soviética, isso não foi mais possível.
Além disso, na esteira do colapso da União Soviética, o triunfo da
economia neoliberal de livre mercado somou a esse mix um elemento
crítico. O neoliberalismo iria se mostrar muito mais desestabilizador do
que parecia à época.
Veja a Síria, de novo. A expansão do livre mercado, num país onde não
havia nem legitimidade democrática, nem o domínio da lei, significou
acima de tudo uma coisa: plutocratas ligados às famílias que governavam
as nações tomaram para si tudo o que parecia potencialmente lucrativo.
No processo, tornaram-se assustadoramente ricos, enquanto os habitantes
empobrecidos das vilas, das cidades e das favelas urbanas, que antes
contavam com o estado para conseguir emprego e comida barata, sofreram.
Ninguém deveria surpreender-se pelo fato de que esses lugares tenham se
tornado redutos das rebeliões sírias, depois de 2011. Na capital,
Damasco, à medida em que se expandia o reino do neoliberalismo, até
mesmo os membros menos importantes do mukhabarat, a polícia secreta, passaram a viver com apenas 200 a 300 dólares mensais, enquanto o estado tornava-se uma máquina de ladrões.
Esse tipo de saque e leilão do patrimônio nacional espalhou-se por
toda a região nestes anos. O novo governo egípcio, comandado pelo
general Abdel Fattah al-Sisi, impiedoso em relação a qualquer sinal de
dissidência interna, foi emblemático. Em um país que tinha sido
referência para regimes nacionalistas em todo mundo, ele não hesitou, em
abril deste ano, em abrir mão de duas ilhas no Mar Vermelho para Arábia
Saudita, de cujo financiamento e “ajuda” seu regime é dependente. (Para
a surpresa de todos, o Tribunal Superior do Egito suspendeu
recentemente a decisão de Sisi).
Esse gesto, profundamente impopular entre egípcios cada vez mais
pobres, foi o símbolo de uma mudança mais vasta no equilíbrio do poder
no Oriente Médio. Os estados mais poderosos da região – Egito, Síria e
Iraque – eram regimes seculares nacionalistas, e foram um contrapeso
genuino às monarquias da Arábia Saudita e do Golfo Pérsico. No momento
em que o poder destas ditaduras seculares enfraqueceu, a influência das
monarquias fundamentalistas sunitas só aumentou. Se em 2011 vimos a
rebelião e revolução espalharem-se por todo Oriente Médio, com o breve
florescimento da Primavera Árabe, também vimos a contrarrevolução
ressurgir, financiada pelas milionárias petromonarquias do Golfo, que
nunca tolerariam uma mudança para um regime democrático secular na Síria
ou Líbia.
Adiciona-se a isso novos processos em curso que fragilizaram estes
estados: a produção e venda de recursos naturais – petróleo, gás e
minério – e a cleptomania que o acompanha. Esses países sofrem
frequentemente com algo que se tornou conhecido como “a maldição dos
recursos”: estados cada vez mais dependentes das receitas advindas da
venda dos recursos naturais – o suficiente para fornecer para toda
população, teoricamente, um patamar razoável de vida digna – tornando-se
ditaduras grotescamente corruptas. Nelas, iates dos bilionários locais,
com conexões cruciais para os regimes, vivem cercados por favelas com
esgoto a céu aberto. Nesses países, a política tende a concentrar-se
entre as elites, batalhando e manobrando para roubar as receitas do
Estado e desviá-la o mais rápido possível para fora do país.
Este tem sindo o padrão da vida econômica e política em grande parte
da África subsariana, de Angola à Nigéria. No Oriente Médio e África do
Norte, no entanto, existe um sistema diferente, em geral mal entendido
mundo afora. Há similarmente grandes desigualdades no Iraque ou na
Arábia Saudita, com elites cleptocráticas semelhantes. Entretanto, eles
governam seus estados com parte significativa da população, patrocinando
oferta de trabalhos no setor público em troca da passividade política
ou apoio a seus regimes cleptocráticos.
O Iraque tem uma população de 33 milhões de pessoas. No momento, nada
menos que 7 milhões estão na folha de pagamento do governo, graças a
salários e pensões que custam US$ 4 bilhões por mês. Esta forma rude de
distribuir as receitas do petróleo à população sempre foi denunciada
como corrupta pelos comentaristas e economistas ocidentais. Eles, por
sua vez, geralmente recomendam o corte desses trabalhos, mas isso
significaria que toda a receita advinda dos recursos naturais, em vez de
uma parte, seria roubada pela elite. Isso, de fato, é cada vez mais o
caso nessas terras, onde o preço do petróleo despenca e até mesmo a
realeza saudita começa a cortar o suporte estatal para a população.
Por algum tempo, acreditou-se que o neoliberalismo seria o caminho
para democracias seculares e economias de livre mercado. Na prática, tem
sido tudo, menos isso. Ao contrário: junto com a maldição dos recursos
naturais, e as repetidas intervenções militares de Washington e seus
aliados, as economias do “livre” mercado desestabilizaram profundamente o
Oriente Médio. Encorajado por Washington e Bruxelas [sede da União
Europeia], o neoliberalismo do século 21 tem feito sociedade desiguais
ainda mais desiguais e ajudado transformar regimes já corruptos em
máquinas de saques. Esta é também, obviamente, a fórmula para o sucesso
do Estado Islâmico ou qualquer alternativa radical para o status quo.
Tais movimentos encontram facilmente apoio em regiões empobrecidas e
negligenciadas, como o leste da Síria ou o leste da Líbia.
Note, contudo, que este processo de desestabilização não é uma
peculiaridade do Oriente Médio e Norte da África. Estamos certamente na
era da desestabilização, um fenômeno que está crescendo globalmente,
espalhando-se para os Bálcãs e Leste Europeu (com a União Europeia cada
vez menos capaz de influenciar os acontecimentos na região). Não se fala
mais de integração europeia, mas de como prevenir a completa dissolução
da União Europeia na esteira do supetão dado pelo Brexit na Inglaterra.
As razões pelas quais uma estreita maioria dos britânicos votou no
Brexit tem paralelos com o Oriente Médio. As politicas econômicas de
livre mercado perseguidas pelos governos, desde que Margaret Thatcher
foi primeira-ministra, aprofundaram o fosso entre ricos e pobres e entre
cidades ricas e boa parte do resto do país. A Grã-Bretanha pode estar
indo bem, mas milhões de britânicos não compartilham da mesma
prosperidade. O referendo sobre permanecer como membro da União
Europeia, opção quase universalmente defendida pelo establishment
britânico, tornou-se o catalisador para o protesto contra o status quo.
A fúria dos que votaram a favor da saída tem muito em comum com a dos
apoiadores do Donald Trump nos Estados Unidos.
Os EUA continuam a ser uma superpotência, mas já não são tão forte
como antes. Eles, também, estão sentindo a tensão deste momento global,
em que eles e seus aliados locais são suficientemente poderosos para
imaginar que podem se livrar dos regimes de que não gostam — mesmo sem
ter sucesso, como na Síria, ou tendo sucesso, mas sem poder substituir o
que eles destruíram, como na Líbia. Um político iraquiano disse uma vez
que o problema em seu país é que os partidos e movimentos eram “muito
fracos para ganhar, mas muitos fortes para perder”. Este é cada vez mais
o padrão de toda a região e está se espalhando para outros lugares.
Isto traz consigo uma possibilidade de um ciclo interminável de guerras
indecisas e uma era de instabilidade que já começou.
(fonte: http://outraspalavras.net/capa/rumo-a-uma-era-da-desintegracao/)
Desintegração dos estados, um dos tripés do neoliberalismo. Uns até dizem que é plano dos illuminatis...
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