Meu nome é Suzette Bloch. Sou jornalista e, além disso, neta e detentora
dos direitos autorais do historiador e resistente Marc Bloch.
Eu
li seu editorial do dia 14 de junho sobre o manifesto dos Historiadores
pela democracia. Ele me deixou estupefata e indignada. Seu jornal
utiliza o nome de meu avô para justificar um engajamento ideológico
totalmente oposto ao que ele foi, um erudito que revolucionou a ciência
histórica e um cidadão a tal ponto engajado na defesa das liberdades e
da democracia que perdeu a vida, fuzilado pelos nazistas em 16 de junho
de 1944.
O jornal recorre ao nome de Marc Bloch para responder
aos historiadores brasileiros que se posicionaram contra o afastamento
da presidenta Dilma Rousseff. “Pensamento único, historiadores muito bem
posicionados na academia, a serviço de partidos, bajuladores do poder
etc.”; seu editorial não argumenta, apenas denigre. Eis porque tiveram
necessidade de se valer de uma obra de alcance universal e da vida
irretocável do meu avô para tonar virtuoso seu apoio ao golpe de Estado.
Condeno
toda instrumentalização política de Marc Bloch. Para além do homem
público, ele é o avô que eu não conheci, mas que nos deixou como herança
a memória de uma família para a qual a liberdade representa a essência
de toda humanidade. Em todo lugar, a cada instante, no Brasil inclusive.
Vocês omitiram aos seus leitores o fato de que o filho mais velho de
Marc Bloch, meu tio Étienne, que libertou Paris junto com a 2ª. Divisão
Blindada do General Leclerc, foi o presidente do comitê de solidariedade
França-Brasil nos anos 1970. Este comitê auxiliou as vítimas do regime
civil-militar iniciado com o golpe de 1964 e manteve-se na luta pelo
retorno da democracia brasileira. Poderiam ainda ter explicado aos seus
leitores que a neta de Marc Bloch se casou com um brasileiro, Hamilton
Lopes dos Santos, refugiado político do Brasil e depois do Chile, tendo
chegado na França em 1973 em razão do golpe de Pinochet. Poderiam,
enfim, ter anunciado que dois dos bisnetos de Marc Bloch, Iara e
Marc-Louis, são franco-brasileiros.
Conseguem
imaginar a reação de meu avô diante do espetáculo dos deputados que
votaram pelo afastamento de Dilma Rousseff em nome de suas esposas, de
seus filhos, de Deus ou de um torturador? Imaginem ainda sua reação
diante de um presidente interino que formou um governo exclusivamente de
homens e cuja primeira medida foi suprimir o Ministério da Cultura e o
Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos,
suspendendo e reduzindo diversos programas sociais, como o Minha casa,
minha vida. Ministros empossados são investigados por corrupção e alguns
foram exonerados após a divulgação de conversas nas quais admitiam que o
afastamento de Dilma não tinha senão um objetivo: parar as
investigações contra a corrupção. Imaginem a reação de meu avô!
O
presidente francês, François Hollande, foi eleito com 51,9% dos votos
em 2012 e sua popularidade não passava de 16% em maio. No entanto, seus
adversários políticos sequer sonharam em contestar sua legitimidade
conquistada nas urnas, apenas estão se preparando para as próximas
eleições, como em toda democracia digna deste nome. Não pode haver
democracia sem o respeito às eleições. Contudo, um grande jornal como
este aplaude o confisco do voto popular.
Mas deixo a palavra ao
historiador Fernando Nicolazzi, integrante do grupo de Historiadores
pela democracia, para quem solicitei escrever este direito de resposta
com outras vozes.
…
O convite feito por Suzette Bloch para juntar
minhas palavras às suas, no ato solidário e indispensável de combater a
impostura de um jornal comprometido, em cada linha de seus editoriais,
com a defesa de um golpe de Estado em curso, não poderia ser recusado.
Este mesmo jornal, que há alguns meses disse um “basta!” à democracia,
ecoando o gesto autoritário cometido pelo Correio da Manhã em 1964,
agora direciona seus impropérios ao grupo de historiadores e
historiadoras que atuam em defesa dos princípios democráticos de nossa
sociedade. Faço parte deste grupo e estive na audiência realizada com a
presidenta eleita Dilma Rousseff no último dia 7 de junho.
O
editorial de 14 de junho, que pretende definir o “lugar de Dilma na
história”, faz menção a palavras escritas por Marc Bloch,
desvinculando-as irresponsavelmente daquele que as escreveu. Nesse
sentido, instrumentaliza politicamente o nome do historiador francês,
autor de uma apologia da história elaborada no momento mesmo em que
atuava na resistência contra o fascismo e em defesa das liberdades
democráticas. Suzette Bloch, em justificável indignação, já apontou
acima o desrespeito ético e a desonestidade intelectual que caracterizam
este texto. Quanto a isso não cabem aqui outras palavras.
Porém,
é preciso fazer frente também à outra dimensão contida naquele
editorial: sua falaciosa representação dos historiadores e historiadoras
que assinaram o manifesto, definidos ali como intelectuais “a serviço
de partidos políticos”, comprometidos com a elaboração de um “pensamento
único”, “bajuladores do poder”. O editorial traz ainda as marcas da sua
baixeza moral ao sugerir, sem qualquer respaldo aceitável, que muitos
dos participantes do encontro com a presidenta a “detestam”. Nada mais
desonesto, nada mais mentiroso! Mas também nada mais compreensível!
Afinal,
não é difícil compreender que, para setores da sociedade comprometidos
com a manutenção da exclusão em suas diferentes formas, a defesa da
democracia e da inclusão social cause incômodo e provoque atitudes como
esta que, faltando com a verdade, apenas encontra amparo na ofensa e na
intolerância. Além disso, é fácil compreender que essa seja a única
forma de linguagem política assumida pelo jornal, que já definiu os
opositores ao golpe de “matilha de petistas e agregados”: a propagação
do seu ódio na busca de cumplicidade, como se ele fosse compartilhado
por todas as pessoas. Basta acompanhar as inúmeras e diversas
intervenções dos Historiadores pela democracia para constatar quão
caluniador e distante dos fatos é o editorial.
O golpe
parlamentar, jurídico e midiático em curso ataca direitos sociais,
políticos e civis que são fundamentais para a existência da democracia.
Tais direito foram conquistas feitas pela sociedade e não simples
concessões governamentais. Lutar contra este golpe não significa
defender um governo ou um partido político, mas sim defender a vigência
de princípios básicos de cidadania, considerando que a justiça social
deve ser um valor preponderante em nossa sociedade. Foram estas razões
que me fazem participar do grupo, além da convicção íntima, enquanto
historiador e enquanto cidadão, de que posicionar-se pela democracia se
coloca hoje como um imperativo incontornável na nossa vida pública.
Em
um texto que pretende dizer o que deve ser o exercício da
historiografia, lemos apenas o uso inconsequente da história e a
utilização deturpada da obra de um historiador que soube como poucos
escrever sobre o próprio métier. Apesar da indignação causada, o
editorial cumpriu seu papel esperado, sem nenhuma surpresa. E ao menos
algo positivo ficará dessa situação: não será preciso aguardar
historiadores futuros para colocar o Estadão em seu devido lugar na
história, ou seja, ao lado dos golpistas do passado, os mesmos que em 2
de abril de 1964 comemoraram a vitória do “movimento democrático” que
hoje conhecemos como ditadura civil-militar e que, além de vitimar
milhares de pessoas, ampliou a desigualdade social no Brasil. Seus
editorialistas continuam realizando com esmero essa função no presente.
*O
texto foi enviado para o portal Estadão, como resposta ao editorial
publicado em 14/06/2016. Não houve resposta por parte dos editores.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Neta-de-Marc-Bloch-responde-a-editorial-do-Estadao/4/36437)
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