por Flávio Sarandy
Por que o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) submete os
livros didáticos à avaliação das instituições de ensino superior se o
livro é destinado à educação básica? Por quê, se serão os
professores da educação básica que deverão escolher os seus livros
didáticos? Se aos olhos do MEC os docentes da Educação Básica não têm a
competência para a avaliação dos livros, não deveriam ter de escolher
entre os “livros aprovados” e, por outro lado, se se admite terem eles a
competência para escolher, por que não participam da avaliação, em
paridade de condições com especialistas acadêmicos, gestores dos
sistemas de ensino, mães, pais, alunas e alunos? Não deveriam todos os
interessados ter a oportunidade, por direito e competência num sentido
muito além da competência institucionalizada, de dizer o livro que
almejam e de avaliar os livros que têm sido produzidos? Como política
pública de relevância nacional, o PNLD poderia ganhar em eficácia e
eficiência se estruturado a partir de um marco regulatório que
definisse, inclusive, os parâmetros de qualidade de um livro didático, a
partir de ampla, inclusiva, participativa e paritária decisão de todos
os interessados ou afetados pelo livro didático.
O marco regulatório para o setor deveria considerar ao menos três
dimensões: qualidade pedagógica, científica e editorial do livro
didático; transparência e normatização do processo de escolha;
integração consistente com uma política para o mercado editorial,
considerada a maximização da equanimidade nas condições de oferta,
acesso e preço. Pode-se alegar que a primeira dimensão abordada já está
prevista na política do livro didático. Não é bem assim. A fixação da
qualidade do livro didático não está fixada num marco regulatório
permanente – ainda que sujeito a mudanças, construída por processo
coletivo inclusivo, em que se leve em conta a experiência acumulada de
todos os sujeitos afetos, de editores e pesquisadores acadêmicos aos
docentes e discentes da escola básica. A lacuna, no caso, é a
inexistência de uma política participativa de avaliação, o que poderia
elevar o seu grau de accountability e a sua efetividade. O
ideal seria que todos os sujeitos interessados participassem do Programa
e da construção de seu marco regulatório a partir de sua concepção e
não somente no momento da avaliação dos livros inscritos. Algo similar
se poderia dizer da segunda dimensão: o processo de escolha está
fracamente institucionalizado, desde que os procedimentos burocráticos
previstos, a despeito de sua normatização legal e gestão por sistema
informatizado federal, peca no que diz respeito ao acesso à informação.
Uma política pública, ainda mais em se tratando de avaliação, não
prescinde (ou não deveria prescindir) de ser acompanhada de um processo
massivo de informação e treinamento para o próprio processo. Se ao
professor não está garantido o conhecimento necessário sobre o processo
de escolha do livro didático, dado que sequer ele tem acento na
avaliação dos livros inscritos no programa, o trabalho reduz-se à lógica
mercadológica da publicidade editorial. Por outro lado, a terceira
dimensão sugere a integração da política de gestão do PNLD às demais
políticas da área educacional (um exemplo seria a construção de
parâmetros de qualidade do livro didático relacionados à BNCC), assim
como sua integração com políticas de barateamento dos custos industriais
do livro no Brasil. Por exemplo, envolver “a ponta do mercado”, as
livrarias, no processo distributivo, com rubrica própria no Orçamento da
pasta educacional, em nível ministerial, talvez contribuísse para
diluir custos relacionados à distribuição dos livros diretamente pelas
editoras, além de permitir que outros agentes econômicos concorressem no
processo e não somente as corporações de grande capital. Outras medidas
de interesse também poderiam ser avaliadas, como a exigência de
percentual de capital nacional das corporações envolvidas, fixação de
parâmetros para a divulgação das obras, centralizadas por gestão
ministerial, em convênio com as secretarias estaduais de educação e
tendo como operadores as livrarias, fixação de parâmetros e princípios
para a publicidade do livro didático, emprego de material reciclável na
produção gráfica etc.
Por que o PNLD, como política pública incide exclusivamente sobre a avaliação e não a distribuição?
Ora, a avaliação dos livros didáticos é objeto relevante de política
pública nacional, porém, tem sua eficácia social comprometida quando, na
distribuição dos livros didáticos obtém vantagem a grande editora (que
no caso brasileiro é cada vez mais controlada por capital estrangeiro). O
MEC deveria compreender que se a distribuição não é acordada com
escolas, agentes do mercado, professoras e professores, gestores dos
sistemas de ensino e alunas e alunos, e controlada por regras de
imparcialidade, publicidade e transparência, entra em ação a lógica da
guerra de mercado, em que chegam às escolas somente os livros de
editoras com capital suficiente para investir em publicidade,
distribuidores nacionais (os “divulgadores”) e ações promocionais. O que
isso tem a ver com a tão festejada qualidade do livro didático, segundo
o MEC? Um mistério. A distribuição do livro didático deveria ser
tratada como ponto crítico dessa política pública, justamente por
tratar-se do momento do processo em que a disputa do interesse comercial
compromete as bases e os princípios do programa. Todo o trabalho –
limitado, por estar restrito aos profissionais das instituições de
ensino superior, é comprometido quando, no processo de divulgação e
distribuição, abandona-se à coordenação do processo à esfera regional ou
estadual, e permite-se que a escolha do livro por parte do docente da
educação básica seja influenciada por ações de marketing. Permitir que
as secretarias estaduais de ensino gestem o processo de escolha do livro
didático significa, na prática, o Ministério da Educação abandonar a
condução objetiva da educação pública aos espaços de maior influência
das corporações empresariais e de outros interesses privatistas no
setor. É recorrente e gritante a alegação de docentes da falta de
informação suficiente do processo previsto no PNLD (e aqui nem estamos
considerando alunos e famílias), assim como tem sido constante as
alegações de práticas abusivas no processo de divulgação e promoção das
obras. Tudo isto poderia ser bem equacionado por uma revisão do processo
de gestão, do tipo de convênio firmado entre a União e os Estados e
Municípios e pela criação de um marco regulatório para o setor.
Não seria questão de justiça política, equidade, fair play
comercial e elevação da qualidade das produções didáticas o MEC
promover, com a participação incisiva do docente da educação básica, a
criação de um marco regulatório para o setor? Pelo qual editoras,
autores, gestores, livreiros, professoras, professores, mães, pais,
alunas e alunos pudessem se pautar em decisões curriculares e didáticas
consistentes? Afinal, a cada edição do PNLD há alterações no desenho do
edital, ainda que mínimas, nos critérios de avaliação, nas exigências
formais etc., de modo que as editoras e os autores necessitam de um
grande esforço para ajustarem as suas obras, dedicando muito tempo em
procedimentos burocráticos – para atender o edital! – e menos tempo do
que poderiam para evoluir os seus livros. Do mesmo modo, docentes
frequentemente tem de alterar os seus percursos didáticos a fim de
adaptarem-se às novas obras aprovadas.
Sem contar que a avaliação do PNLD, sendo avaliação cega que garante
maior transparência (princípio constitucional) ao processo avaliativo,
por vezes, se apresenta cega num outro sentido, pois que a universidade
não é espaço homogêneo e os campos científicos e disciplinares não
cultivam critérios exatos e consensuais no que tange à didática de suas
disciplinas. Disso decore que bons livros didáticos, ao olhar dos
docentes da Educação Básica, são reprovados sob a visão do especialista
da universidade, por vezes até pelo comportamento exclusivamente
burocrático do avaliador ante a ausência de uma legenda numa imagem! Um
completo non sense, mas já ocorreu em avaliação do tipo aqui considerado.
Caso exemplar para a disciplina Sociologia é a reprovação do livro Sociologia para o Ensino Médio,
dos professores Nelson Dacio Tomazi e Marco Antônio Rossi. Os
argumentos utilizados na justificativa da reprovação indicam
desconhecimento da obra reprovada e pouca compreensão sobre o sentido do
ensino da disciplina no Ensino Médio. Isso apenas tem lugar, ao meu
ver, porque se atribui ao pesquisador da universidade uma autoridade
inconteste, na mesma medida em que se exclui a escola do processo. Outro
exemplo é a preocupação externada quanto a nova seção “Aprendendo com
jogos”, do livro Sociologia para Jovens do Século XXI, de Luiz
Fernandes de Oliveira e Ricardo Cesar Rocha da Costa. O alerta diz
respeito à inexistência de computadores em muitas escolas e às
dificuldades em se fazer uso de jogos em sala de aula. Entretanto, mais
uma vez os avaliadores ou os colegas que elaboraram o Guia do Livro
Didático (pois que o processo é bastante burocrático e os textos
resultantes da avaliação podem passar por muitas mãos, revisões e
reescritas) denotaram desconhecimento parcial do texto que avaliaram,
pois que a proposta elaborada na seção é de uso e aplicação pedagógica
da experiência de jogo, não de sua utilização em sala de aula.
Em muitos casos, as propostas de atividades apresentadas dispensam o uso
de recursos computacionais em sala de aula. A preocupação externada
fica ainda mais destoante quando se atenta para o fato de que ao menos
1/3 das propostas elaboradas não aplicam jogos digitais! Ainda mais
grave é um avaliador aparentar desconhecer as necessárias mediações,
finalidades e limitações do ensino de qualquer disciplina científica em
âmbito escolar. Veja-se, novamente, o caso da preocupação com as
propostas de aprendizagem a partir da experiência com jogos (com
qualquer jogo, em suporte digital ou físico, como jogos de cartas, por
exemplo): ao afirmar a inexistência de salas de informática nas escolas o
alerta assume uma visão de escolaridade restrita ao espaço escolar e
supõe que os jovens não jogariam por não acessarem computadores nas escolas.
No entanto, eles jogam! Tais distorções quanto à natureza do ensino na
educação básica apenas são possíveis devido à excessiva burocratização
do processo avaliativo e a sua restrição ao especialista do campo
científico acadêmico.
Por que, dado tratar-se de política pública, o PNLD não está integrado às demais dimensões do setor educacional?
Senão, vejamos: não é exigido para os sistemas particulares (algo
incompreensível, por modo de dizer), não envolve as livrarias no
processo de compra e distribuição dos livros (o que poderia contribuir
para o seu barateamento se a distribuição ficasse sob a responsabilidade
de livrarias, com rubrica orçamentária da pasta da educação, o que
reduziria os custos das editoras e permitiria que outros agentes
econômicos ingressassem num mercado altamente concentrado) e não
estabelece ponte direta entre Ministério e escolas (onde a direção da
unidade escolar deve inserir a escolha do docente, quando os próprios
docentes deveriam proceder ao registro do livro selecionado). Ao incluir
as secretarias estaduais de ensino, o processo abre espaço para todo o
tipo de manipulação e ingerência indevida, senão ilegal, sobre o
processo de escolha. Exatamente porque transfere uma política de Estado
para a esfera da política regional ou local. Uma política pública que
tem por finalidade uma única dimensão de algo complexo não é eficaz para
além da retórica. O livro didático não se reduz a sua qualidade
pedagógica intrínseca, por assim dizer, mas é objeto complexo inserido
em estrutura de relações econômicas, culturais, semióticas, políticas,
legais e pedagógicas diversas. O PNLD deveria integrar mais preocupações
que a qualidade técnica do livro sob o olhar de especialistas
acadêmicos.
Por que somos aturdidos em todas as edições do PNLD com
recorrentes alegações de que algumas secretarias de educação nos estados
antecipam o período de escolha do livro didático sem que nenhuma ação
de apuração ou controle seja esboçada pelo Ministério da Educação?
Chegou-se a dizer que secretarias de educação orientam os professores
que preencham a lápis a ficha de seleção do livro didático? Acaso isso
seria a propósito de “corrigir” a escolha do livro segundo a
conveniência da secretaria? Por quê? Seria para facilitar a logística de
distribuição dos livros? Mas fica a dúvida: se a distribuição tem
origem no MEC, que adquire os livros por meio de contratos de compra em
quantidades compatíveis com as informações preenchidas em sistema online
pelas direções das unidades escolares (por sua vez definidas pelas
escolhas autônomas dos professores, que deliberam coletivamente por
disciplina), e passa pelas editoras, que devem providenciar a impressão
gráfica e o envio dos livros, restando às secretarias a (difícil?)
tarefa de entregar os livros em cada escola sob sua jurisdição, ou
melhor, a gestão, supervisão e coordenação do processo de distribuição
(dado que são as editoras que têm de entregar os livros na quantidade
especificada no contrato com o MEC), o que efetivamente gera problemas
de logística, a escolha por parte dos docentes de livros distintos para
as diferentes escolas ou a gestão administrativa das secretarias?
Porque a escolha de livros diferentes para contextos e propostas
pedagógicas escolares distintas nada tem a ver com a operação de
distribuição dos livros. O problema da distribuição é questão
administrativa do órgão gestor, que tem a obrigação de respeitar a
especificidade dos contextos escolares e a prerrogativa de autonomia
docente sobre o livro mais adequado ao perfil de suas alunas e de seus
alunos. Se admitirmos o argumento da facilidade de distribuição se
somente um livro for adotado, então deveríamos esperar dificuldades do
próprio Ministério da Educação no controle sobre diferentes obras e
consequentes contratos com diferentes editoras. Melhor seria a escolha
do livro único ser definida em nível ministerial e o contrato, celebrado
com uma única editora para todo o território nacional! Algo,
naturalmente, absurdo. Ocorre que nada disso se justifica. Sobretudo,
pelo violento desrespeito à autonomia de professoras e de professores.
Por fim, porém não menos importante: por que o MEC anunciou alteração na política de avaliação do PNLD, em direção a um modelo ainda menos transparente e nada participativo?
A notícia sugere que a avaliação será por equipe composta nem por
edital público nem por concurso, mas por “escolha do Ministério”. Sobre
isso, creio que este texto já fornece elementos suficientes para o
debate.
Essas são questões que julgo graves e que mereceriam de todos mais do que a repetição pura e simples do lugar comum da importância do PNLD.
Aos que festejam acriticamente o programa recordo que porque o PNLD é
de grande importância mereceria de nós um olhar mais discreto e crítico
sob a intenção de garantir-se que seus objetivos acumulem eficácia e
eficiência, seja em termos de resultados pedagógicos seja em termos de
resultados de sua gestão como política pública.
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2017/08/23/algumas-perguntas-sobre-o-pnld/)
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