Em artigo publicado em agosto pela MIT Technology Review[1], o músico e escritor nova-iorquino David Byrne, autor do livro “How Music Works” escreve algo muito interessante sobre a tecnologia envolvida na denominada Revolução 4.0.
Ele afirma que o desenvolvimento tecnológico e a inovação recente,
durante a última década, têm uma agenda não pronunciada: a de criar a
possibilidade de um mundo com menos interação humana. E longe de ser
apenas um “bug” desta tecnologia, ele aponta isso como uma
característica dela.
A tecnologia de que estamos falando não reivindica ou reconhece que a
eliminação da necessidade de lidar diretamente com os humanos é seu
principal objetivo, mas é este o resultado de um número surpreendente de
casos, afirma Byrne. A julgar pela evidência, essa conclusão parece incontornável. A maioria das notícias tecnológicas é sobre algoritmos, inteligência artifical, robôs e carros auto-dirigidos,
todos os quais se encaixam nesse padrão. Não estou dizendo que tais
desenvolvimentos não sejam eficientes e convenientes. Este não é um
julgamento. Estou simplesmente percebendo um padrão, afirma ele[2].
Mais ainda, para Byrne, neste desenvolvimento
tecnológico a interação humana é muitas vezes percebida, desde a
mentalidade de um engenheiro, vista como complicada, imperfeita,
ineficaz e lenta. Então, sobram motivos para eliminá-la ao máximo, para
tirar a parte humana do caminho. E o problema é que quando se tem tanto
poder sobre o resto do mundo, como o setor de tecnologia tem sobre as
pessoas, muitas delas que talvez não compartilhem dessa visão de mundo,
existe o risco de um estranho e incômodo desequilíbrio.
Mas quais são os efeitos de menor interação? Ele aponta que para nós,
como sociedade, menos contato e interação - interação real - parece
levar a menos tolerância e compreensão da diferença, além de mais inveja
e antagonismo. Como já foi evidenciado recentemente, as mídias sociais
realmente aumentam as divisões, ampliando os efeitos de eco e nos
permitindo viver em bolhas cognitivas. Somos alimentados com o que já
gostamos ou com os amigos semelhantes (ou, mais provavelmente, o que
alguém nos pagou para ver em um anúncio que imita conteúdo). Desta
forma, nós realmente nos tornamos menos conectados - exceto para aqueles
em nosso grupo. As redes sociais também são uma fonte de infelicidade. Byrne cita estudo realizado no início deste ano por dois cientistas sociais, Holly Shakya na UC San Diego e Nicholas Christakis em Yale, mostrando que quanto mais as pessoas usam o Facebook,
pior se sentem sobre suas vidas. Embora essas tecnologias afirmem nos
conectar, o efeito certamente não desejado é que eles também nos separam
e nos deixam tristes e invejosos.
“Não estou dizendo que muitas dessas ferramentas, aplicativos e
outras tecnologias não são extremamente convenientes, inteligentes e
eficientes. Eu uso muitos delas sozinho. Mas, em certo sentido, elas são
contrárias a quem somos como seres humanos. Nós evoluímos como
criaturas sociais, e nossa capacidade de cooperação é um dos grandes
fatores de sobrevivência. A interação social e a cooperação, do tipo que
nos torna quem somos, é algo que nossas ferramentas podem aumentar, mas
não substituir”, afirma Byrne. Afirma ainda, que
quando a interação se torna uma coisa estranha e desconhecida, então
teremos mudado quem e o que somos como espécie. Colocamos em risco, por
exemplo, a democracia. A menor interação, mesmo a interação casual,
significa que se pode viver em uma bolha tribal - e sabemos onde isso
leva.
É possível que uma menor interação humana possa nos salvar? Segundo
ele, os seres humanos são caprichosos, erráticos, emocionais,
irracionais e tendenciosos no que às vezes parecem formas
contraproducentes. Muitas vezes parece que nossa natureza rápida e
egoísta será a nossa queda. É necessária a perfeição da racionalidade.
Ou seja há, ao que parece, muitas razões pelas quais tirar os seres
humanos da equação em muitos aspectos da vida pode ser uma coisa muito
boa. Porém, Antonio Damasio, neurocientista na UCLA, escreveu sobre um paciente que ele chamou de Elliot,
que teve um dano no lobo frontal que o deixou sem emoção. Em todos os
outros aspectos, ele era bem inteligente, saudável, mas emocionalmente
ele era Spock. Elliot não pôde tomar decisões. Damasio
concluiu que, embora pensemos que a tomada de decisão é racional e
maquinista, são nossas emoções que nos permitem realmente decidir.
Com os seres humanos sendo um tanto imprevisíveis (bem, até que um
algoritmo remova completamente essa ilusão), obtemos o benefício de
surpresas, acidentes felizes e conexões e intuições inesperadas. A
interação, a cooperação e a colaboração com outros multiplica essas
oportunidades. Somos uma espécie social. Em seu livro Sapiens, Harari
afirma que isso é o que nos permitiu ser tão bem-sucedidos. Ele também
afirma que essa cooperação foi muitas vezes facilitada pela capacidade
de acreditar em "ficções", como nações, dinheiro, religiões e
instituições jurídicas. As máquinas não acreditam em ficções - ou ainda
não.
Byrne termina com um autoquestionamento: “Estou me
perguntando o que nos resta quando há cada vez menos interações humanas.
Remova os seres humanos da equação e somos menos completos como pessoas
e como sociedade. Nós não existimos como indivíduos isolados. Nós, como
indivíduos, somos habitantes de redes; somos relacionamentos. É assim
que prosperamos e prosperaremos”.
Notas:
[1]. Artigo completo disponível aqui. A síntese e edição é de Lucas Henrique da Luz, colaborador do IHU.
[2]. Exemplos de tecnologias de consumo que resultam em uma menor interação humana, citadas por Byrne:
a) pedidos on-line e entrega a domicílio, que são
extremamente convenientes, como Amazon, FreshDirect, Instacart, etc. Não
apenas cortaram interações nas livrarias e nas linhas de pagamento;
Eles eliminaram toda a interação humana dessas transações, excluindo as
recomendações on-line (muitas vezes pagas para que tal livro, objeto,
serviço seja recomendado).
b) Música digital: downloads e transmissão
- não há nenhuma loja física, é claro, então não há nenhum funcionário
com quem conversar, que entenda de música e discuta com você. Alguns
serviços oferecem recomendações algorítmicas. Além disso, outros
algoritmos mostram o que seus amigos gostam e você nem precisa falar com
eles para saber. E lá se vai uma função social da música, talvez.
c) Veículos sem motoristas: existem grandes
vantagens para a eliminação de seres humanos aqui - teoricamente, as
máquinas devem dirigir com mais segurança do que os seres humanos, então
pode haver menos acidentes e mortes. As desvantagens incluem perda de
emprego maciça. Mas esse é outro assunto. O que estou vendo aqui é o
padrão consistente "eliminando o humano", eliminando a interação. E
mesmo quando tem um motorista, o sistema da a rota, o trajeto e se você
não quiser nem mesmo falar com o “driver”, não será necessário. E, o
pagamento, é feito via aplicativo, sem interação também.
d) Pagamento automatizado:
compras de mercado, comidas em restaurante, roupas em lojas, etc. É
escolher, pedir, consumir e pagar, tudo automaticamente, sem necessidade
de contato com alguém. A Amazon vem testando lojas - até lojas de
supermercado - com compras automatizadas. Eles são chamadas de Amazon
Go. A idéia é que os sensores saberão o que você pegou. Você pode
simplesmente sair com as compras que serão cobradas na sua conta, sem
qualquer contato humano.
e) Força de robô: as
fábricas cada vez mais têm cada vez menos trabalhadores humanos, o que
significa que não há personalidades para lidar, sem agitação para horas
extras e sem doenças. O uso de robôs evita a necessidade de um
empregador pensar em saúde, segurança social, impostos e benefícios de
desemprego do trabalhador.
f) Assistentes pessoais:
com reconhecimento de fala melhorado, cada vez mais pode conversar com
uma máquina como Google Home ou Amazon Echo em vez de uma pessoa.
g) Jogos de vídeo (e realidade virtual):
sim, alguns jogos online são interativos. Mas a maioria é jogada em uma
sala por uma pessoa colocada no jogo. A interação é virtual.
h) MOOCS: educação on-line sem interação direta com professores.
i) Mídias "sociais":
esta é uma interação social que não é realmente social. Enquanto o
Facebook e outros freqüentemente afirmam oferecer conexão, e oferecem a
aparência dele, o fato é que muitas mídias sociais são uma simulação de
conexão real.
(fonte: http://www.ihu.unisinos.br/570796-as-tecnologias-da-revolucao-4-0-e-a-interacao-humana-ganhamos-em-eficiencia-mas-perdemos-como-especie)
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