Texto escrito por José de Souza Castro:
“Estou chocado com a parcialidade da comunicação social europeia,
incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela”, afirma o economista
Boaventura Sousa Santos, em artigo no jornal Público, de Portugal. Estranho que alguém quatro anos mais velho que eu e muito mais experiente ainda se choque com a parcialidade da imprensa. Houvesse vivido no Brasil, desse espanto ele estaria imune.
Aqui a imprensa é sempre parcial, quando em jogo interesses de ricos e
poderosos ante o restante da população. Não só do país, mas do mundo.
Na Venezuela, diz Boaventura, o que está em causa são as maiores
reservas de petróleo do mundo e não a democracia. E quando os Estados
Unidos ameaçam com sanções por causa do plebiscito de domingo, o motivo é
o mesmo, porque “é crucial para o seu domínio global manter o controlo
das reservas de petróleo do mundo. Qualquer país, por mais democrático,
que tenha este recurso estratégico e não o torne acessível às
multinacionais petrolíferas, na maioria, norte-americanas, põe-se na
mira de uma intervenção imperial”, interpreta o economista português.
Foi por esta razão que o Iraque foi invadido e o Médio Oriente e a
Líbia arrasados, acrescenta Boaventura. “Pela mesma razão, houve
ingerência, hoje documentada, na crise brasileira, pois a exploração do
petróleo do pré-sal estava nas mãos dos brasileiros.”
Pela mesma razão, prossegue, o Irã voltou a estar em perigo,
e a revolução bolivariana tem de cair sem ter tido a oportunidade de
corrigir democraticamente os graves erros que os seus dirigentes
cometeram nos últimos anos. “Sem ingerência externa, estou seguro de que
a Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática.
Infelizmente, o que está no terreno é usar todos os meios para virar os
pobres contra o chavismo, a base social da revolução bolivariana e os
que mais beneficiaram com ela”.
Algo que você não vai encontrar nos jornais, em rádios e televisões
no Brasil são os tais benefícios da revolução bolivariana, tais como os
descritos, logo no início do artigo, por Boaventura:
“As conquistas sociais das últimas duas décadas são indiscutíveis.
Para o provar basta consultar o relatório da ONU de 2016 sobre a
evolução do índice de desenvolvimento humano. Diz o relatório: ‘O índice
de desenvolvimento humano (IDH) da Venezuela em 2015 foi de 0.767 — o
que colocou o país na categoria de elevado desenvolvimento humano —,
posicionando-o em 71.º de entre 188 países e territórios. Tal
classificação é partilhada com a Turquia.’ De 1990 a 2015, o IDH da
Venezuela aumentou de 0.634 para 0.767, um aumento de 20.9%. Entre 1990 e
2015, a esperança de vida ao nascer subiu 4,6 anos, o período médio de
escolaridade aumentou 4,8 anos e os anos de escolaridade média geral
aumentaram 3,8 anos. O rendimento nacional bruto (RNB) per
capita aumentou cerca de 5,4% entre 1990 e 2015. De notar que estes
progressos foram obtidos em democracia, apenas momentaneamente
interrompida pela tentativa de golpe de Estado em 2002 protagonizada
pela oposição com o apoio ativo dos EUA.”
Boaventura escreveu antes da realização do plebiscito. Para ele, não
há dúvida sobre o direito do presidente Nicolás Maduro de convocá-lo,
num momento em que a Venezuela vive um dos momentos mais críticos da sua
história, desde que “a queda do preço do petróleo em 2014 causou um
abalo profundo nos processos de transformação social então em curso”.
A oposição sentiu que o seu momento tinha chegado, “no que foi, mais
uma vez, apoiada pelos EUA”. Sobretudo quando o presidente Obama
considerou a Venezuela como uma “ameaça à segurança nacional dos EUA” e,
em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia
Nacional (AI). A Assembleia Constituinte visa, exatamente, ultrapassar a
obstrução da AI dominada pela oposição.
Se Dilma Rousseff tivesse feito o mesmo quando Eduardo Cunha barrava
todas as medidas propostas por seu governo para superar a crise, como
teria reagido a imprensa brasileira? A TV Globo, a Folha de S.Paulo, e
Estadão e a Veja? Talvez, apressasse seu impeachment, sem a necessidade
de recorrer à farsa das pedaladas fiscais…
Como bem sabemos, o enviesamento da imprensa brasileira é mais grave
que a europeia, pois somos menos civilizados. Apesar disso, observa
Boaventura, vê-se na Europa “um enviesamento que recorre a todos os
meios para demonizar um governo legitimamente eleito, atiçar o incêndio
social e político e legitimar uma intervenção estrangeira de
consequências incalculáveis”.
O autor diz que as sanções econômicas – tais como as planejadas pelos
Estados Unidos – afetam mais os cidadãos inocentes que os governos.
“Basta recordar as mais de 500.000 crianças que, segundo o relatório da
ONU de 1995, morreram no Iraque em resultado das sanções impostas depois
da guerra do Golfo Pérsico”. Depois de lembrar que vive na Venezuela
meio milhão de portugueses ou lusodescendentes, Boaventura conclui: “A
história recente também nos diz que nenhuma democracia sai fortalecida
de uma intervenção estrangeira.”
Donald Trump não é um grande conhecedor da história. Fosse, não faria
diferença: o que importa a morte de meio milhão de crianças, comparada
com o domínio de 297 bilhões de barris de petróleo, reserva estimada na
Venezuela?
Democracia? Não vem ao caso.
(fonte: https://kikacastro.com.br/2017/08/01/venezuela/#more-14165)
Boaventura é um dos pensadores mais audaciosos dos últimos tempos. Sua epistemologia nos chama pra outros paradigmas. Ele tem razão a democracia é uma mentira.
ResponderExcluir