domingo, 6 de agosto de 2017

E a democracia na Venezuela? Não vem ao caso

Texto escrito por José de Souza Castro:

“Estou chocado com a parcialidade da comunicação social europeia, incluindo a portuguesa, sobre a crise da Venezuela”, afirma o economista Boaventura Sousa Santos, em artigo no jornal Público, de Portugal.  Estranho que alguém quatro anos mais velho que eu e muito mais experiente ainda se choque com a parcialidade da imprensa. Houvesse vivido no Brasil, desse espanto ele estaria imune.
Aqui a imprensa é sempre parcial, quando em jogo interesses de ricos e poderosos ante o restante da população. Não só do país, mas do mundo.
Na Venezuela, diz Boaventura, o que está em causa são as maiores reservas de petróleo do mundo e não a democracia. E quando os Estados Unidos ameaçam com sanções por causa do plebiscito de domingo, o motivo é o mesmo, porque “é crucial para o seu domínio global manter o controlo das reservas de petróleo do mundo. Qualquer país, por mais democrático, que tenha este recurso estratégico e não o torne acessível às multinacionais petrolíferas, na maioria, norte-americanas, põe-se na mira de uma intervenção imperial”, interpreta o economista português.
Foi por esta razão que o Iraque foi invadido e o Médio Oriente e a Líbia arrasados, acrescenta Boaventura. “Pela mesma razão, houve ingerência, hoje documentada, na crise brasileira, pois a exploração do petróleo do pré-sal estava nas mãos dos brasileiros.”
Pela mesma razão, prossegue, o Irã voltou a estar em perigo, e a revolução bolivariana tem de cair sem ter tido a oportunidade de corrigir democraticamente os graves erros que os seus dirigentes cometeram nos últimos anos. “Sem ingerência externa, estou seguro de que a Venezuela saberia encontrar uma solução não violenta e democrática. Infelizmente, o que está no terreno é usar todos os meios para virar os pobres contra o chavismo, a base social da revolução bolivariana e os que mais beneficiaram com ela”.
Algo que você não vai encontrar nos jornais, em rádios e televisões no Brasil são os tais benefícios da revolução bolivariana, tais como os descritos, logo no início do artigo, por Boaventura:
“As conquistas sociais das últimas duas décadas são indiscutíveis. Para o provar basta consultar o relatório da ONU de 2016 sobre a evolução do índice de desenvolvimento humano. Diz o relatório: ‘O índice de desenvolvimento humano (IDH) da Venezuela em 2015 foi de 0.767 — o que colocou o país na categoria de elevado desenvolvimento humano —, posicionando-o em 71.º de entre 188 países e territórios. Tal classificação é partilhada com a Turquia.’ De 1990 a 2015, o IDH da Venezuela aumentou de 0.634 para 0.767, um aumento de 20.9%. Entre 1990 e 2015, a esperança de vida ao nascer subiu 4,6 anos, o período médio de escolaridade aumentou 4,8 anos e os anos de escolaridade média geral aumentaram 3,8 anos. O rendimento nacional bruto (RNB) per capita aumentou cerca de 5,4% entre 1990 e 2015. De notar que estes progressos foram obtidos em democracia, apenas momentaneamente interrompida pela tentativa de golpe de Estado em 2002 protagonizada pela oposição com o apoio ativo dos EUA.”
Boaventura escreveu antes da realização do plebiscito. Para ele, não há dúvida sobre o direito do presidente Nicolás Maduro de convocá-lo, num momento em que a Venezuela vive um dos momentos mais críticos da sua história, desde que “a queda do preço do petróleo em 2014 causou um abalo profundo nos processos de transformação social então em curso”.
A oposição sentiu que o seu momento tinha chegado, “no que foi, mais uma vez, apoiada pelos EUA”. Sobretudo quando o presidente Obama considerou a Venezuela como uma “ameaça à segurança nacional dos EUA” e, em dezembro de 2015, a oposição conquistou a maioria na Assembleia Nacional (AI). A Assembleia Constituinte visa, exatamente, ultrapassar a obstrução da AI dominada pela oposição.
Se Dilma Rousseff tivesse feito o mesmo quando Eduardo Cunha barrava todas as medidas propostas por seu governo para superar a crise, como teria reagido a imprensa brasileira? A TV Globo, a Folha de S.Paulo, e Estadão e a Veja? Talvez, apressasse seu impeachment, sem a necessidade de recorrer à farsa das pedaladas fiscais…
Como bem sabemos, o enviesamento da imprensa brasileira é mais grave que a europeia, pois somos menos civilizados. Apesar disso, observa Boaventura, vê-se na Europa “um enviesamento que recorre a todos os meios para demonizar um governo legitimamente eleito, atiçar o incêndio social e político e legitimar uma intervenção estrangeira de consequências incalculáveis”.

O autor diz que as sanções econômicas – tais como as planejadas pelos Estados Unidos – afetam mais os cidadãos inocentes que os governos. “Basta recordar as mais de 500.000 crianças que, segundo o relatório da ONU de 1995, morreram no Iraque em resultado das sanções impostas depois da guerra do Golfo Pérsico”. Depois de lembrar que vive na Venezuela meio milhão de portugueses ou lusodescendentes, Boaventura conclui: “A história recente também nos diz que nenhuma democracia sai fortalecida de uma intervenção estrangeira.”
Donald Trump não é um grande conhecedor da história. Fosse, não faria diferença: o que importa a morte de meio milhão de crianças, comparada com o domínio de 297 bilhões de barris de petróleo, reserva estimada na Venezuela?
Democracia? Não vem ao caso.

(fonte: https://kikacastro.com.br/2017/08/01/venezuela/#more-14165)

Um comentário:

  1. Boaventura é um dos pensadores mais audaciosos dos últimos tempos. Sua epistemologia nos chama pra outros paradigmas. Ele tem razão a democracia é uma mentira.

    ResponderExcluir