Uma estudiosa de Guy Debord propõe
pistas para acessar o pensamento do filósofo. Sua obra central, que
completa 50 anos, vasculhou as lógicas de dominação do capitalismo
contemporâneo
Por Iná Camargo Costa
Arte política
Logo depois de publicar seu livro A sociedade do espetáculo
(1967), Guy Debord fez um filme com o mesmo nome (1973) no qual retoma
todos os procedimentos do cinema de agitprop desenvolvido na Rússia
revolucionária por gente como Eisenstein, ao mesmo tempo em que faz
avançar tanto as propostas dos seus antecessores quanto as que enunciou
no livro, que foi pensado entre outras coisas como uma intervenção no
debate estético-político francês.
Disponível no You Tube com legendas em português, este filme
merece ser visto e revisto, pois a totalidade dos seus argumentos está
ali exposta, bem como a resposta que Guy Debord queria dar no plano da
política e da arte. No plano da política, trata-se de resgatar o
programa da democratização radical do modo de produção e, por
consequência, de revolucionar por completo o modo de vida sob o
capitalismo (ainda em aliança com a fraude chamada socialismo nos anos
de 1960-70). O filme já seria uma expressão legítima deste processo de
luta, na medida em que identifica e denuncia processos, agentes, modos
de expressão artístico-publicitários, etc., e já é uma proposta prática e
artística do que fazer (para citar Lenin, uma das referências de
Debord).
A começar pela publicidade, os processos
fundamentais da nossa sociedade do espetáculo continuam os mesmos, mas
seus agentes já foram substituídos por outros menos toscos, de modo que
uma atualização do filme (não do livro) poderia reaproveitar sua
estrutura básica (no sentido do détournement, como ele mesmo fez
com os filmes então apreciados espetacularmente pelos cinéfilos
franceses) e substituir as cenas daquele presente francês por cenas do
nosso presente (2017). Desconfio que os resultados seriam igualmente
impressionantes. Um filme assim diria muito mais do que a quase
totalidade dos discursos supostamente críticos dos processos a que temos
assistido espetacularmente nos anos que se seguiram às manifestações de
junho de 2013.
O texto que segue foi preparado para uma
exposição do tema aos integrantes da Brava Companhia de teatro em 2009
(reproduzida a seguir) e acolheu de modo radical a proposição debordiana
do détournement. Isto é: salvo pela edição, tudo o que será lido está no livro A sociedade do espetáculo.
Aqui a sua função é contribuir para apropriações do pensamento
debordiano que sejam mais produtivas do que até agora tem acontecido,
pelo menos no Brasil, em que se observa o lamentável fenômeno da
apropriação espetacular de um pensamento que se pretende crítico do
espetáculo.
Descrição do fenômeno histórico
Espetáculo é ao mesmo tempo uma relação
social e a relação interpessoal mediada por imagens. É o modelo atual da
vida que domina na sociedade. É a justificação total das condições e dos objetivos do sistema capitalista.
O espetáculo é o discurso ininterrupto
que a ordem atual faz a respeito de si mesma. É um monólogo laudatório.
Começa no pseudo-diálogo da vida cotidiana e familiar, desenvolve-se na
vida econômica, é cultivado metodicamente na universidade e constitui o
oxigênio dos meios de comunicação.
Como elemento constitutivo do
espetáculo, a publicidade é mentira metódica. Cada nova mentira da
publicidade é também a confissão da mentira anterior. Cada queda de uma
figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava
por unanimidade.
O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido.
Gênese
A sociedade do espetáculo deita raízes
em todas as formas sociais que a precederam. Mas a ordem das coisas que
está no âmago da dominação do espetáculo moderno nasceu no mesmo momento
histórico em que a representação do proletariado (suas organizações)
passou a opor-se radicalmente à classe: o primeiro passo deu-se quando o
bolchevismo triunfou na Rússia e a social-democracia lutou
vitoriosamente pela velha ordem.
O segundo passo foi dado pelo stalinismo
que instrumentalizou a Terceira Internacional como força de apoio da
sua diplomacia para sabotar todos movimentos revolucionários e apoiar
governos burgueses dos quais esperava retribuição em seus negócios
mundiais.
O fascismo – passo seguinte –, por mais
que seja adepto da mais conservadora ideologia burguesa, em si mesmo não
é fundamentalmente ideológico. Ele é arcaizante em seu recurso ao mito
para organizar a comunidade definida por pseudo-valores arcaicos como
raça, sangue e chefe. O fascismo é arcaísmo tecnicamente equipado e
constitui um dos fatores do espetáculo moderno, a começar pelo papel
essencial que desempenhou na destruição do antigo movimento operário
(previamente desarmado pela social-democracia e pelo stalinismo).
O fim da União Soviética e seus
satélites (ocorrido no ínicio dos anos de 1990), a aliança da
mistificação burocrática, significa que a burguesia perdeu o adversário
que objetivamente a sustentava unificando de modo ilusório a negação da
ordem presente.
O proletariado não foi suprimido, como
afirmam os intelectuais a serviço da sociedade do espetáculo. Ao
contrário, ele se amplia com a extinção do campesinato e com a extensão
da lógica do trabalho assalariado para os “serviços” e as profissões
intelectuais – entre as quais a de artista. E o trabalho intelectual
assalariado tende a seguir a lei da produção industrial da decadência,
na qual o lucro do empresário depende da rapidez da execução e da má
qualidade do material utilizado.
Crítica
A crítica à sociedade do espetáculo só terá consequência prática se apontar para a organização revolucionária. E tem que ser globalmente formulada contra todos os aspectos da vida social, que estão sob o encanto do fetiche da mercadoria.
A cultura é a esfera geral do
conhecimento e das representações do vivido. Numa sociedade dividida em
classes, ela é o poder de generalização que existe em separado, como
divisão intelectual do trabalho e trabalho intelectual da divisão. Mas a
cultura é também o lugar da busca da unidade perdida. Nesta busca, a
cultura como esfera separada é obrigada a negar a si mesma,
produzindo-se como intervenção crítica da economia política.
A crítica espetacular do espetáculo,
funcional a ele, é um empreendimento da sociologia, que estuda a
separação recorrendo às ferramentas conceituais e materiais produzidas
pela separação. A apologia do espetáculo, ou publicidade, por sua vez,
constitui um pensamento do não pensamento, um esquecimento explícito da
prática histórica. O falso desespero da crítica espetacular e o falso
otimismo da pura publicidade do sistema são idênticos enquanto
pensamento submisso.
Para destruir a sociedade do espetáculo é preciso pôr em ação uma força prática. A teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação da sociedade de classes.
E esta negação, a retomada da luta de classes revolucionária, se
tornará consciente de si ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a
teoria das suas condições reais, as condições práticas da opressão
atual.
O espetáculo é a ideologia por
excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo
o sistema ideológico: o empobrecimento, a subordinação e a negação da
vida real.
O espírito do espetáculo é completamente
despótico. Nunca a censura foi tão perfeita. Esta sociedade já não
aceita ser criticada. O discurso espetacular silencia tudo o que é
propriamente secreto e tudo o que não lhe convém.
A ignorância dos espectadores nasce
daquilo que o espetáculo ensina. O discurso do espetáculo não deixa
espaço para resposta. A lógica só se forma socialmente pelo diálogo; não
é fácil e ninguém quer ensiná-la aos espectadores. Por outro lado,
nenhum drogado estuda lógica porque já não precisa dela e já não tem
esta possibilidade. A preguiça do espectador é a mesma de qualquer
intelectual, do especialista formado às pressas, que vai sempre tentar
esconder os estreitos limites dos seus conhecimentos através da
repetição dogmática de algum argumento de autoridade sem qualquer
lógica.
O discurso da sociedade do espetáculo é falacioso, enganador, impostor, sedutor, insidioso e capcioso.
A maior exigência da máfia, onde quer
que esteja, é estabelecer que ela não existe, ou que foi vítima de
calúnias. Este é apenas o seu primeiro ponto de semelhança com o
capitalismo e a sociedade do espetáculo.
(fonte: http://outraspalavras.net/destaques/para-compreender-a-sociedade-do-espetaculo/)
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