sexta-feira, 25 de novembro de 2016

'A tortura como arma de Guerra': a memória e a relevância do testemunho para a História



por Dr. Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus

No dia 30 de novembro a PUC-SP receberá a jornalista Leneide Duarte-Plon autora do livro:  A tortura como arma de Guerra (2016), no qual mostra como franceses exportaram para o Brasil a doutrina de tortura militar usada na Guerra da Argélia, prática negada pelo governo da França e confessada pelo general Paul Aussaresses em depoimento dado para a própria jornalista.

Assim que tive contato com o livro pensei que seria muito propício trabalhá-lo com meus alunos do curso de História. O interesse despertado em mim enquanto professor-pesquisador da História recente do país se concentrou em dois pontos. Primeiro, pela delicada situação política e cultural em que estamos vivendo atualmente, no Brasil e no mundo, marcada, entre outras questões, por disputas pelas memórias e por momentos de profundo mal gosto (para ser o mais educado possível), pautados por reivindicações de volta ao regime militar e apologia aos seus torturadores, como ao do Coronel Ulstra, ex-chefe do Doi-Codi. Uma segunda questão técnica que me chamou muito a atenção no trabalho de pesquisa feito para o livro, foi o uso de uma gama variada de fontes históricas. Leneide não entrevistou apenas o general francês Paul Aussaresses, mas também o general brasileiro Armando Luiz Malan de Paiva Chaves e Henri Alleg, jornalista torturado a mando de Aussaresses. Além disso, pesquisou também, documentos escritos como, por exemplo, relatórios secretos enviados a Paris nos quais Aussaresses e outros adidos militares analisavam a política externa e interna do Brasil. Mesmo não sendo historiadora de formação tal trabalho da jornalista é um ótimo exemplo, principalmente para os alunos que estão começando a trabalhar na área, de como fazer uma pesquisa histórica de qualidade, cruzando fontes de suportes diferenciados, como documentos escritos e testemunhos orais. Especificamente esse último está ganhando cada vez mais relevância nos dias de hoje, diante, principalmente do mau uso feito da memória em nome de interesses políticos e ideológicos extremados.

Mesmo tendo sido utilizado desde a época da antiguidade por Heródoto e Tucídides, o uso sistemático do testemunho como fonte histórica é uma prática relativamente recente na disciplina histórica. Na verdade, passou a ser reconhecido como tal a partir dos anos 1960, com o crescimento da chamada história do tempo presente, ou seja, o estudo do passado recente ou imediato como objeto da História. Com esse “novo” olhar, passou-se a questionar a ideia de que o acontecimento, para ser objeto da história, deveria já estar arquivado e organizado a partir de documentos escritos, o que reduziria a possibilidade de equívocos. Uma ilusão ingênua de uma exatidão cartesiana que não é própria das ciências humanas.  Essa situação marca de vez o rompimento com o fato de que só se faz História a partir de um distanciamento temporal considerável, como se esse distanciamento garantisse a credibilidade da análise dos fatos. Tais conclusões teóricas possibilitaram com que historiadores compartilhassem com os jornalistas o estudo da contemporaneidade. No entanto, diferentemente destes, passaram a buscar no tempo curto, não a verdade absoluta dos fatos, mas sim as várias impressões a respeito deste fato. E é a partir daí que se passou a valorizar as experiências individuais, deslocando-se dos interesses das estruturas para as situações singularmente vividas. Aos poucos as fontes escritas perderam a áurea de passaporte único para o passado e o historiador deixou de ser visto como mero decifrador de documentos para ganhar espaço na pesquisa dita de campo, podendo trabalhar, também, com os vivos.

Assim, começa a se valorizar um método já utilizado em outros campos das ciências humanas, que na História foi denominado de “História oral”. Tal prática de colher depoimentos para entender o passado trabalha com algo que denominamos memória oral, ou seja, lembranças, ressentimentos e até esquecimentos de uma determinada experiência social. O uso de tais depoimentos requer muito cuidado e destreza, pois por serem produtos de experiências singularizadas, não devem ser tomados como visão única do passado, por outro lado também, não devem ser desprezados, pois o passado é feito a partir dessas diversas experiências em conjunto.  Por esse motivo é que, como bem fez Leneide, tais testemunhos devem ser comparados com outras fontes e problematizados, pois diferentemente do que muitos pensam, a entrevista e a sua transcrição não são a própria História, ou seja, a memória, mesmo oral não é História, mas sim a retenção de experiências diversas, estando por isso, diferentemente da História, inconsciente das deformações causadas pelos traumas, emoções e ressentimentos. O papel do historiador é, por meio de suas técnicas, entre elas o diálogo entre diferentes documentos e testemunhos, enxergar tais deformações que não são levadas em conta por aqueles que querem fazer mau uso do passado, e que por isso tomam depoimentos como verdade absoluta dos fatos, desprezando tais condicionamentos da memória (emoções, traumas, interesses diversos).

Definitivamente não é isso que Leneide faz em “A tortura como arma de Guerra”, pelo contrário ela enxerga tal diferença entre história e memória e as armadilhas que inconsciência de tal distinção pode trazer. Por isso trabalha com outras fontes e com o cotejo de outros depoimentos.

Essa diferenciação entre História e memória como feita pela jornalista é essencial principalmente, num momento em que críticos de iniciativas como a da “Comissão da Verdade” acreditam que ouvir só uma versão, como por exemplo dos generais que negam a tortura no Regime Civil-Militar Brasileiro (1964-1985), já é o suficiente para desabonar todo um trabalho calcado em depoimentos e documentações diversificadas. Assim, por exemplo, nostálgicos do Nazismo e do Regime Civil-Militar utilizam tal discussão para defender teses estapafúrdias do tipo “O Holocausto nunca aconteceu” ou “não houve tortura no regime militar”. Nesse caso se apropriam de memórias que lhes interessam e negligenciam a história e suas práticas em favor de um discurso político e ideológico. Para responder tais barbaridades é que o historiador italiano Carlo Ginzburg escreveu um artigo famoso nos anos 1990, denominado “Somente um Testemunho”, calcado no fato de que apenas um testemunho já pode contribuir para que um fato não seja esquecido. Desta forma ele não quer dizer que o testemunho é a comprovação do real, como querem os negacionistas (negadores do Holocausto), mas sim que, a memória oral, desde que trabalhada a partir das operações historiográficas, pode contribuir para chegar o mais próximo de tal realidade. Situação que fica muito clara a partir do uso sensato dos depoimentos de Aussaresses feita por Leneide no seu livro.

Tal abordagem se torna válida também em estudos a respeito Holocausto e da tortura do regime militar brasileiro, situações que nós historiadores denominamos de “acontecimentos limites”, ou seja, impossível de ser negados, haja visto a quantidade de indícios que comprovam tais fatos. No entanto, tal constatação só pode ser dada a partir do diálogo de fontes escritas, muitas vezes oficiais, como da polícia nazista e da polícia política brasileira (documentação do DOPS), com os testemunhos orais dos sobreviventes, já que nos primeiros documentos há pouca evidência de práticas de torturas, pois os códigos cifrados eram a tônica de tais escritos. Exemplar nesse sentido é o termo “solução final”, que só pudemos saber que significava o extermínio judeu devido a esse diálogo entre documentos escritos e testemunhos orais.

Assim, se a memória não é História, também pode-se dizer que não há História sem Memória. E no caso da memória da “tortura como arma de guerra” o olhar crítico acerca dos testemunhos feito por Leneide, principalmente de Aussaresses, trouxe uma contribuição relevante para o uso ético da história. Situação urgente num momento que o Brasil e mundo estão passando por desilusões com presente e manipulações oportunistas do passado.        

Dr. Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus- Professor do Departamento de História PUC-SP, Superintendente da Fundação Pró-Memória e autor dos livros:  “Antissemitimo e Nacionalismo, Negacionismo e Memória” (2006) e “Revista Gil Blas e o Nacionalismo de Combate” (2013), ambos publicados pela Editora UNESP.

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