Do blog Lista de Livros
“Tal como os doutores da Igreja, os
médicos estavam constantemente preocupados com as ameaças infernais.
Para eles, como para a sociedade na qual se inseriam, o diabo era o
grande causador das doenças, fossem elas de ordem corporal ou
espiritual. Assim, uma das finalidades dos seus livros era a difusão de
conselhos contra as armadilhas diabólicas. O demônio difundido por esses
doutores era uma criatura poderosíssima e capaz de produzir toda sorte
de males, fosse direta ou com a ajuda das duas aliadas, as bruxas e
feiticeiras. “Não há enfermidade a que seja tributária a natureza humana
que os feitiços não possam produzir com a virtude diabólica que em si
têm...”, comentou o médico Bernardo Pereira.
(...) Brás Luís de Abreu, outro médico de
renome, mostrava entusiasmo semelhante em relação aos remédios
oferecidos pela Igreja, principalmente quando pesava a suspeita de o mal
ter sido provocado por algum feiticeiro. Após discorrer sobre a
facilidade com que esses indivíduos provocavam doenças, lembrava que
“... contra todos estes inimigos da vida humana e para vencer os males
que eles nos comunicam é o mais poderoso alexifármaco e o remédio mais
eficaz o uso de todos os sacramentos da Igreja. Primeiramente o batismo a
quem ainda não o tivesse recebido, (depois)... o sacrossanto sacrifício
da missa, o repetido uso de água benta..., o sinal da cruz...,
relíquias dos santos..., as formas que chamamos Agnus Dei..., as orações
e ladainhas... e sobretudo uma fé viva, sincera e pura em Deus,
resignando-nos em tudo na Sua divina vontade e confessando que só Ele é o
verdadeiro médico”. Nos quatro tratados mencionados – acentuadamente em
Bernardo Pereira e Brás de Abreu – existe um fato surpreendente e por
isso merece ser ressaltado: teólogos e demonólogos são citados com muito
mais frequência do que os nomes de médicos e demais indivíduos ligados
ao saber científico. Por tratar-se de livros de medicina, as alusões a
Hipócrates, Galeno e Avicena, por exemplo, são raríssimas se comparadas
ao número de vezes que aparecem referências aos nomes de Santo
Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Del Rio, De Lancre, Sprenger,
Torreblanca e Vale de Moura, além de vários autores de manuais de
exorcismos. Da leitura dessas obras infere-se também que os livros de
medicina funcionaram como fonte importantíssima de divulgação dos
grandes tratados da demonologia europeia em Portugal. (...)
Dentre
os remédios espirituais mais divulgados pelos médicos portugueses
estavam os exorcismos, e por mais estranho que possa parecer foram eles
os grandes apologistas desses rituais. Nada existe de paradoxal ou
extraordinário nesta conclusão se lembrarmos que a medicina, ainda bem
restrita, muitas vezes necessitava dos argumentos da demonologia para
legitimar as suas próprias fraquezas. Incapazes de compreender as leis
que regulavam o próprio funcionamento do corpo, muitas vezes os médicos
usavam as “teorias” dos demonólogos como espécie de “ciência auxiliar”
que os ajudava a diagnosticar as doenças e a justificar os limites da
medicina, já que aquilo que não se compreendia era logo imputado ao
Maligno.”
“No período precedente as reformas do
ensino superior, o aprendizado da medicina fazia-se mediante a leitura
dos textos latinos de Hipócrates, Galeno e seus comentadores árabes.
Formulada pelos gregos e posteriormente ampliada por Galeno, a teoria da
existência dos quatro humores fundamentais do organismo (sangue,
fleuma, bile e bile negra ou humor melancólico) vigorou na medicina
luso-brasileira até uma época bem avançada do século XVIII. Para a
conservação da saúde, os humores deveriam estar presentes no organismo
em quantidades proporcionadas e equilibradas. Caso faltasse ou sobrasse
alguma dessas substâncias, tinha-se o corpo desequilibrado. De acordo
com este sistema, a fonte do sangue era o coração; a fleuma originava-se
no cérebro; a bile, no fígado, e a bile negra ou humor melancólico
tinha sua sede no baço. Humor melancólico, semelhante à noite e às
trevas, a bile negra era então considerada o humor preferido do diabo, e
assim qualquer disfunção relacionada a esta substância facilitava a sua
entrada no corpo do indivíduo.”
“Grosso modo, os manuais que circularam no
mundo luso-brasileiro entre os séculos XVII e XVIII apresentavam grande
semelhança no que diz respeito à organização temática. Em geral, havia
uma discussão mais ampla sobre o poder diabólico e os motivos que
impulsionavam o Criador a concedê-lo. Assim, ao mesmo tempo que
exaltavam as capacidades diabólicas, atitude comum a todos os autores
que trataram do assunto, explicavam por que Deus permitia a entrada do
demônio no corpo dos homens. Três razões justificavam a concessão
divina, escreveu Pinamonte, sendo a primeira para provocar a “...
confusão do demônio; a segunda para o bem dos homens, e a terceira, para
a glória de Deus”. Induzir o Maligno a atormentar os humanos era uma
forma de mostrar o quanto o poder diabólico era inferior em relação ao
divino, pois diante das palavras dos exorcistas o agente infernal
recuava e finalmente era expulso. Segundo alguns autores que se ocuparam
do tema, muitos indivíduos eram atacados por terem se afastado da
verdadeira fé. Assim, a vexação levava ao arrependimento e era
autorizada justamente para mostrar a necessidade de maior aproximação de
Deus e dos preceitos religiosos.”
“A certa altura do século XVIII, alguns
setores mais cautelosos e céticos da Igreja já começaram a perceber que,
muitas vezes, era o próprio clero (em sua insistente identificação de
casos médicos onde o exorcismo deveria ser aplicado) o responsável pela
multiplicação dos demônios.”
“Quando formulou a ideia do
Desencantamento do mundo, Max Weber apontou a magia como o mais forte
obstáculo à racionalização econômica do universo. A concepção de um
mundo regido por forças mágicas é totalmente incompatível com a crença
na capacidade humana de gerar benefícios à sociedade e com o
desenvolvimento tecnológico. Na verdade, a magia aparece como empecilho à
técnica impondo inúmeros obstáculos ao seu desenvolvimento, e assim a
ascensão da técnica só foi possível devido ao declínio da magia. O
triunfo da tecnologia no mundo ocidental deve-se principalmente ao fato
de que na Europa, devido a fatores religiosos e intelectuais, foi mais
fácil erradicar as crenças mágicas do que em outros lugares. Um ambiente
intelectual favorável, nutrido pelo cristianismo, pela tradição
racionalista da Antiguidade clássica e agora, fortalecido pela revolução
científica do século XVII, induzia as sociedades europeias a um gradual
distanciamento dos sistemas mágicos.”
“A especificidade do caso português foi em grande parte condicionada pela influência exercida pela filosofia de Santo Tomás de Aquino na formação intelectual das elites. Nenhum aspecto da cultura e do pensamento permaneceu alheio ao aquinense, incluindo a magia, a demonologia e demais sistemas afins. Para Santo Tomás, o diabo era uma criatura poderosíssima, porém, nada que se comparasse ao infinito poder de Deus. Assim, uma vez que entendiam que as ações do demônio estavam submetidas ao Criador e, de certa forma, controladas, os portugueses acabaram não se envolvendo na caça às bruxas com a mesma intensidade de seus vizinhos europeus, prevalecendo uma visão relativamente cética em relação ao fenômeno da bruxaria e da demonologia.”
“A noção que se tinha até certa altura do
século XVIII era essencialmente tomista. Neste sistema eram consideradas
superstições a idolatria, a magia, a adivinhação, a vã observância e o
malefício. Com o enfraquecimento da Escolástica, estas noções vão se
alterar profundamente. Agora, o que as camadas letradas passam a
designar como superstições são as práticas e crenças de indivíduos
considerados ignorantes por conferirem superioridade ao sobrenatural em
detrimento de critérios racionais. Se ao tempo em que as elites
nutriam-se no tomismo, não era supersticioso crer em bruxas, feiticeiras
e outros seres imaginários, com o recuo deste sistema, tais crenças
tornaram-se absolutamente intoleráveis e passaram a ser vistas como
supersticiosas.
Alguns sintomas desta mudança de
perspectiva em relação às superstições podem ser observadas em um
manuscrito existente na Biblioteca da Ajuda – de 1779 – intitulado
Superstições do vulgo. Trata-se de um documento onde são descritas
diversas formas de comportamentos e crenças considerados supersticiosos.
Nesta categoria, o autor do documento aponta o costume de se jogar fora
toda a água das casas onde tivesse morrido alguém, já que era crença
corrente que a alma do morto podia voltar para banhar-se nela; a
vidência através da água; a metempsicose; a crença na influência da Lua
na determinação dos acontecimentos cotidianos; o uso de amuletos e
medicamentos exóticos nas enfermidades e, finalmente, a crença em
bruxas, feiticeiras e nos malefícios perpetrados por eles.”
“Transformada em tribunal régio a partir
de 1769, a Inquisição foi utilizada como braço direito do Estado na luta
em prol das inovações culturais e na remoção dos entraves considerados
incompatíveis com o pensamento racional. Assim, à investida da Mesa
Censória contra as superstições soma-se a promulgação do último
regimento inquisitorial em 1774. Mais preocupada com a difusão da
maçonaria, com a questão do sigilismo e com formas de heresias
consideradas mais ameaçadoras naquele momento, a Inquisição passa a
tratar os assuntos relacionados às artes mágicas de maneira bem
diferente do que fizera até então. Bruxos, feiticeiros, astrólogos e
pessoas que se diziam videntes mudaram radicalmente de estatuto. De
portadores de capacidades sobrenaturais, tais indivíduos passaram a ser
considerados charlatães. Admitida a impossibilidade do pacto diabólico,
os bruxos e feiticeiros não são mais tratados como hereges, mas antes
como doentes mentais ou exploradores da credulidade dos rústicos. Tais
práticas são descriminalizadas, e daí em diante o Hospital Real de Todos
os Santos viria a substituir os cárceres do Santo Ofício. Já então se
percebe que aqueles sistemas ficaram para trás, pois, esclarece o
Regimento, neste século “iluminado seria incompatível com a sisudez e
decoro das Mesas do Santo Ofício instruírem volumosos processos com
formalidades jurídicas e sérias a respeito de uns delitos ideais e
fantásticos, com a consequência de que a mesma seriedade com que fossem
tratados continuasse em lhes fazer ganhar maior crença nos povos, para
neles multiplicarem tantos sequazes das doutrinas, de terem verdadeira
existência os sobreditos enganos e imposturas quanto são os púsiles e os
ignorantes, quando, pelo contrário, sendo desprezados e
ridicularizados, virão logo a extinguir-se, como a experiência tem
mostrado entre as nações mais polidas da Europa”.*
A mudança de atitude do Santo Ofício em
relação às práticas e crenças mágico-demonológicas aparece de forma bem
clara no processo de Sebastião, vaqueiro sentenciado pela Inquisição de
Évora em 1778 por praticar algumas ações destinadas a descobrir autores e
malefícios e lançadores de feitiços. Curiosamente, o alvo dos
inquisidores direciona-se não apenas ao réu, mas também aos indivíduos
que davam crédito a semelhantes “patranhas desta natureza e ridicularias
só aplicadas e cridas por gente sem crítica, sem instrução ou
totalmente fanática, pois nem uma pessoa sisuda e circunspecta se
persuadiu até agora que fosse compatível com a virtude sólida
semelhantes visagens, nem que estas e todo aquele aparatoso
cerimonialístico e inalterável aranzel de despropósitos tivesse conexão
alguma com o fim a que se persuade, aplicado para se esperar dele um
efeito tão extraordinário como é o de alcançar os sobreditos
conhecimentos, estando estes totalmente fora de ordem e forças da
natureza e poder humano, devendo por isto crer-se como pura invenção de
conhecidos mandriões e mendigos ociosos que descobrem nos mencionados
fatos um subsídio e pronto remédio para permanecerem na preguiça,
ganhando alimento sem cansar o corpo com trabalho e iludindo e enredando
o miserável povo ignorante com seus fingimentos, sendo com eles motivos
de mil juízos temerários e todos falsos sobre a adivinhação de quem
será a figura da bruxa que originou aquele mal, passando muitas vezes as
pessoas que se julgam ofendidas a cometer o absurdo de espancar aquela
ou aquele miserável que a sua ideia vaga e incerta lhe ficou
delinquente...”.** Em dia com o Regimento de 1774, os inquisidores já
não associavam tais práticas às heresias, censurando-as antes pelo
charlatanismo de seu autor e ainda pelo caráter quimérico e
supersticioso daquelas práticas.
Pelo esclarecido Regimento de 1774, vê-se
que o conceito de superstição, que antes servia para definir a oposição
aos bons costumes da religião, adquiriu sentido bem mais abrangente.
Nele definem-se como supersticiosos “todos aqueles fatos, escritos,
palavras e cerimônias que nenhuma virtude natural podem ter para
produzirem os efeitos a que se querem ostentar dirigidos; segundo, todos
aqueles atos nos quais os mesmos efeitos senão atribuem a Deus nem à
natureza, mas sim e tão somente às fátuas operações dos mágicos,
sortílegos e astrólogos; terceiro, aquela persuasão que pretendem fazer
crível, que os referidos fatos têm per si mesmos sem serem instituídos
por Deus nem pela Igreja podem ser causa de outros efeitos, os quais de
nenhuma forma se podem atribuir à natureza; quarto, a crença ou
persuasão de que os feitiços, sortilégios, operações divinas e outras
semelhantes obram por virtude e força de pactos implícitos ou explícitos
com o demônio”.* É certo que as condições sociais, políticas e
culturais não acompanharam o ritmo da legislação, mas não restam dúvidas
de que esta mudança foi um passo decisivo para uma tomada de
consciência da coletividade no sentido de romper com a tradição cristã
que pregava a efetividade do poder diabólico.”
Fonte: listadelivrosblogpost. com
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