Acabei de receber e republico. Vale a pena ler!
Texto escrito por José de Souza Castro:
O
julgamento foi um espetáculo, uma farsa, uma maneira ridícula de
procurar a verdade. Mas, como pude perceber, a verdade não era
importante. Talvez em outros tempos um julgamento fosse um exercício de
apresentação dos fatos, a busca pela verdade e a descoberta da justiça.
Hoje um julgamento é um concurso em que um lado vencerá e o outro
perderá. Cada lado espera que o outro se curve às regras ou trapaceie,
então nenhum lado faz um jogo justo. A verdade se perde na disputa.
Não,
não estou escrevendo sobre a Ação Penal 470, o chamado julgamento do
mensalão petista. Nem fui eu quem escreveu o relato acima. Trata-se
simplesmente de um parágrafo de “O manipulador”, o último livro de John
Grisham, publicado em 2012 nos Estados Unidos e, no ano seguinte, no
Brasil, pela Rocco, traduzido por Maira Parula. (E que ainda não acabei
de ler.)
Nada
a ver com a AP 470. Mas me faz pensar nesse processo, tendo em vista o
muito que já se escreveu sobre esse julgamento do Supremo Tribunal
Federal.
Desde logo vou avisando que sou um cético em relação ao judiciário. Cheguei até a escrever um livro que faz parte da biblioteca deste blog (Injustiçados – o Caso Portilho),
antes mesmo de conhecer esse famoso trecho do discurso de Rui Barbosa
no Senado sobre o caso do Satélite II: “De tanto ver triunfar as
nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a
injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o
homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de
ser honesto.”
Ninguém
se lembra mais desse caso que provavelmente foi famoso nos tempos de
Rui Barbosa, mas o que o jurista baiano escreveu continua inesquecível,
porque é muito atual.
A
questão que se apresenta é esta: houve injustiça no julgamento da AP
470 ou na aplicação das penas aos condenados, apesar da inquestionável
maioria dos que acham, principalmente na imprensa, que a maioria dos
juízes do Supremo acertou ao mandar para a prisão José Dirceu, José
Genoíno, Delúbio Soares e tantos outros?
No
dizer de céticos como Wentworth Dillon, poeta inglês que viveu no
século 17, “a multidão está sempre errada”. E já que me lembrei desse
inglês, não custa citar Charles Dickens, nascido na mesma Inglaterra
dois séculos depois, que dedicou parte de seu talento de crítico social
para escrever em 1853 o romance “Bleak House”. A descrição das leis e do
judiciário britânico de seu tempo talvez abale a confiança do leitor
brasileiro honrado que ainda considera os ingleses que exploraram o ouro
das Minas Gerais como paradigmas de civilização. A estes, serve de
consolo uma frase de Samuel Johnson, pensador inglês que viveu um século
antes de Dickens: “É melhor sofrer injustiça do que fazê-la, e
preferível ser às vezes enganado do que não confiar.”
Aos
que, como eu, preferem confiar desconfiando, talvez fosse mais prudente
seguir o conselho de Siro, que na Roma antiga pensava que o remédio
para os males é esquecê-los. Não sei se Siro chegou a conhecer Jesus,
que não esqueceu e foi crucificado.
Sem
querer nada parecido para os leitores, acho perfeitamente possível
esquecer Joaquim Barbosa, o grande protagonista da AP 470, que logo
estará deixando a presidência do Supremo e talvez nem seja eleito para
outro cargo importante. Mas, como aquela frase de Rui Barbosa (e outras
citadas aqui), talvez dure muito mais na memória escrita, depois que
todos nós tivermos partido desta vida (para melhor, espero), esta frase
dele numa das últimas sessões do julgamento: “Foi feito para isso sim!”.
Não saberia explicar a importância dessa frase com a competência de Janio de Freitas, na “Folha de S. Paulo” deste domingo.
Como sei que alguns leitores deste blog não leem o jornal, reproduzo
abaixo o artigo intitulado “Uma frase imensa”, sem pedir permissão ao
autor e ao editor, na esperança de que nenhum dos dois vá se importar:
"Palavras
simples, para uma frase simples. E, no entanto, talvez a mais
importante frase dita no Supremo Tribunal Federal nos 29 anos desde a
queda da ditadura.
Um
ministro considerara importante demonstrar que determinadas penas,
aplicadas pelo STF, foram agravadas desproporcionalmente, em até mais
75% do que as aplicadas a crimes de maior gravidade. Valeu-se de
percentuais para dar ideia quantitativa dos agravamentos
desproporcionais. Diante da reação temperamental de um colega, o
ministro suscitou a hipótese de que o abandono da técnica judicial, para
agravar mais as penas, visasse um destes dois objetivos: evitar o
reconhecimento de que o crime estava prescrito ou impedir que os réus
gozassem do direito ao regime semiaberto de prisão, em vez do regime
fechado a que foram condenados.
Hipótese
de gritante insensatez. Imaginar a mais alta corte do país a fraudar os
princípios básicos de aplicação de justiça, com a concordância da
maioria de seus integrantes, é admitir a ruína do sistema de Justiça do
país. A função do Supremo na democracia é sustentar esse sistema, viga
mestra do Estado de Direito.
O
ministro mal concluiu a hipótese, porém, quando alguém bradou no
Supremo Tribunal Federal: "Foi feito para isso sim!". Alguém, não. O
próprio presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente do Conselho
Nacional de Justiça. Ninguém no país, tanto pelos cargos como pela
intimidade com o caso discutido, em melhor situação para dar
autenticidade ao revelado por sua incontinência agressiva.
Não
faz diferença se a manipulação do agravamento de pena se deu em tal ou
qual processo, contra tais ou quais réus. O sentido do que "foi feito"
não mudaria conforme o processo ou os réus. O que "foi feito" não o foi,
com toda a certeza, por motivos materiais. Nem por motivos religiosos.
Nem por motivos jurídicos, como evidenciado pela inexistência de
justificação, teórica ou prática, pelos autores da manipulação, depois
de desnudada pelo presidente do Supremo.
Restam,
pois, motivos políticos. E nem isso importa para o sentido essencial do
que "foi feito", que é renegar um valor básico do direito brasileiro
--a combinação de prioridade aos direitos do réu e segurança do
julgamento-- e o de fazê-lo com a violação dos requisitos de equilíbrio e
coerência delimitados em leis.
Quaisquer
que fossem os seus motivos, o que "foi feito" só foi possível pela
presença de um fator recente no Supremo Tribunal Federal: a truculência.
"O Estado de S. Paulo" reagiu com forte editorial na sexta-feira, mas a
tolerância com a truculência tem sido a regra geral, inclusive na
maioria do próprio Supremo. A sem-cerimônia com que o presidente excede
os seus poderes e interfere, com brutalidade, nas falas de ministros, só
se compara à facilidade com que lhes distribui insultos. E, como
sempre, a truculência faz adeptos: a adesão do decano da corte, outrora
muito zeloso de tal condição, foi agora exibida outra vez com um
discurso, a título de voto, tão raivoso e descontrolado que pareceu, até
no vocabulário, imitação de Carlos Lacerda nos seus piores momentos.
Nomes? Não fazem hoje e não farão diferença, quando acharmos que teria sido melhor não nos curvarmos tanto à truculência."
(Fonte: http://kikacastro.com.br/2014/03/02/uma-historia-numa-frase/)
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