segunda-feira, 9 de maio de 2016

400 anos da morte de Shakespeare, democracia e golpe

GILBERTO PUCCA*

Creio que não devemos relativizar a situação política que o Brasil atravessa. Em poucos momentos da história do país enfrentamos situação similar. Os governos Vargas e Goulart são os que mais se aproximam. Subscrito pelo jornalista Paulo Henrique Amorim: “No Brasil há pouca disposição de absorver governos trabalhistas”. Coisa que parecia superada, a ruptura institucional volta à pauta em roupagem moderna. Este clima fabricado produziu o pano de fundo da polarização de posições. Tudo virou binário, ou se está desse lado ou se está do outro, contra ou a favor, ladrão ou honesto, mocinho ou bandido.
A corrupção está no outro e, de preferência, no inimigo. Mediação, inferência e análise, saíram de moda. Talvez por isso, literatura de autoajuda esteja entre as mais consumidas. Não sei o que é causa ou efeito. É a projeção do mundo ideal, produzido à luz das nossas verdades e interesses individuais. Talvez Polônio, em Hamlet no século XVI tenha sido o precursor da autoajuda do século XX: “Ser fiel a ti próprio e seja feliz”. Porém Hamlet também explicita: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, ou seja, a corrupção não está apenas nos outros, ela é estrutural e pode estar também em nós, na educação que damos a nossos filhos, na ultrapassagem pelo acostamento, em pagar uma conta a menos sabendo que alguém errou, em comprar atestado de dentista para lançar no Imposto de Renda. Ser binário é quase como escolher Paulo Coelho a Shakespeare. O problema disso tudo é que a polarização interdita o debate. As opiniões pré-fabricadas já estão prontas para ser atiradas contra o inimigo, a racionalidade se assemelha ao Homem de Neandertal. A polarização é terreno fértil para a intolerância, que, por sua vez, é a mãe da violência. Nesse terreno, racismo, xenofobia, homofobia, machismo são postos em prática, sem constrangimentos, e por muitas vezes, em plataformas políticas encontrando ressonância. É por isso que nesta conjuntura há grupos que chegam a defender o fim da democracia.
Viver em sociedade é um exercício de construção de mediações, e o limite da defesa de posições deve ser a fronteira das liberdades democráticas, individuais e coletivas e não podemos negociar com quem tenta ultrapassá-las, seja quem for. Mas as forças vivas e democráticas da sociedade precisam ter espaço para se expressar; se não há esse espaço essas forças eclodem por outros meios. Um exemplo: as manifestações de rua de 2013. Os estádios da Copa funcionaram como estopim, tanto é que a primeira manifestação ocorreu horas antes do jogo inaugural da Copa das Confederações, aqui em Brasília, no Mané Garrincha. Menos do que a corrupção, as construções simbolizaram o distanciamento entre obras esportivas e a necessidade de ampliação de políticas públicas.
Diferente de agora, lá em 2013 não foi apenas a oposição que ocupou as ruas. A sociedade pedia, em síntese, mais políticas públicas. No meu modo de entender, belíssima bandeira. Não se contentavam mais com um SUS meia boca, com a ampliação da educação que ainda não tinha chegado a todos, com a grande inclusão no mercado formal de trabalho, mas também, com a qualidade desse trabalho. A grande inclusão que houve de jovens nas universidades qualificou inclusive as demandas, não bastava mais estar na universidade, se exigia oportunidades iguais para todos. Isso mobilizou todos os setores, das mais variadas matrizes ideológicas, da esquerda à direita democrática. Sem dúvida, fundamentalistas, alimentados e financiados até possivelmente pelo exterior, se infiltraram, mas eram minoria. Mas o fato é que as forças de uma sociedade, considerada até então pacata, eclodiu. O brasileiro não aceitava tudo? Não éramos cordiais? Naquelas manifestações um dos grandes rejeitados eram os partidos políticos, todos. Não era só o PT, ou somente bandeiras vermelhas que eram reprimidas, eram também, as azuis, pretas e amarelas. Proclamava-se que era a sociedade se manifestando sem tutela.
O grito era claro, ninguém nos representa, nem os partidos. O problema, é que, fora das premissas de Bakunin, quando construiu algumas dos princípios do anarquismo ou do comunismo na sua utopia, representações institucionais são necessárias, porque são elas, que devem catalisar se não o consenso, mas as aspirações da maioria. Se não existir esse canal de representação, os desejos, a vontade da sociedade que se expressa em reivindicações, simplesmente se dispersam.
Lembro de uma conversa que tive com o vice-presidente da Câmara dos Deputados, dias depois daquela noite de 21 de junho de 2013, quando mais de 50 mil pessoas se concentraram em frente ao Congresso Nacional, inclusive, depredando o Palácio do Itamaraty. Dizia o Deputado a época: “Fui um dos parlamentares que ficou dentro do prédio aguardando para tentar mediar o dialogo com os manifestantes que, inclusive, queriam invadir. Convidamos uma comissão que os representasse, para recebermos, tentar encaminhar as reivindicações, mas não conseguimos, pois não tinham líderes”. Isso pode parecer alvissareiro, mas não acredito que seja. Não podemos confundir líderes com ditadores ou usurpadores do poder. Líderes congregam o desejo da maioria.
Sem representações como se materializam as reivindicações? Em uma sociedade moderna, com quase 200 milhões de pessoas, como a brasileira, democracia direta não é viável, logo se constrói a democracia representativa. Mas este é o ponto, por mais óbvio que seja, a democracia representativa tem que representar. E nós, cada um de nós, as forças sociais no Brasil, sejam quais forem, se sentem representadas pelos políticos atuais? Nosso sistema político, que é a estrutura que alicerça nossa representação, está adequado? A sociedade se enxerga no conjunto dos parlamentos?
O problema não está apenas no Congresso Nacional, este é somente o que mais aparece. Está também nos grotões, naquela Câmara Municipal daquele pequeno e longínquo município, onde alguns vereadores e prefeitos se elegem prometendo empregos e distribuindo benefícios e, depois de eleitos, recebem emendas e favores dos candidatos a deputados estaduais e federais, e assim sucessivamente. Está também no nosso voto que, por vezes, optamos menos por suas posições e sua plataforma ideológica e mais pelo candidato que é nosso vizinho. Muitas vezes pensamos: se é meu vizinho certamente terei facilidade. O resultado para estes casos é bastante conhecido: depois que se elegem nos dão uma banana.
É Claro, da mesma forma que ingenuamente tentamos usar aquele voto para eleger alguém que dê um jeitinho para nós, estamos sendo usados. Esse parlamentar eleito tem vínculo com quem? Quem ele representa de fato? Você que votou esperando uma ajudazinha, na maioria das vezes está fora do jogo.
Tem um (infeliz) ditado popular que diz: “Cada povo tem o governo que merece”. É mais ou menos dizer o seguinte: olha povo, olha eleitor, você não serve para nada, contente-se com isso, as coisas nunca melhorarão. Isto se presta apenas para quem quer se perpetuar no poder e exercê-lo sem participação. O que faz o nosso voto e, por conseqüência, a nossa representação não servir para nada, ou melhor, servir aos usurpadores é o nosso sistema político. Por isso que a Reforma Política nunca sai.
Venhamos e convenhamos, reforma política é um papo chato. Tenho mais o que fazer. Tenho que trabalhar, inclusive. O que tenho a ver com isso? A raiz da questão está diretamente relacionada ao nosso ultrapassado sistema político. Temos um país do século XXI com uma estrutura política do século XIX.
Mesmo com direito ao voto universal, a nossa representatividade beira a monarquia, algo como abolicionistas contra escravocratas. Você acha que em eleições proporcionais os candidatos mais votados se elegem e os menos votados ficam de fora? Para quem não sabe, prepare o estômago. Dos 513 deputados federais eleitos em 2014, apenas 35 chegaram lá exclusivamente pelo desejo dos eleitores. Olhando-se o copo, pela parte meio vazia, 93% da Câmara Federal é composta por parlamentares que precisaram de votos alheios para se eleger.
No caso específico de São Paulo apenas dois deputados federais, Tiririca e Gabriel Chalita, ultrapassaram o quociente eleitoral de 304 mil votos e de quebra, ajudaram outros 68 candidatos paulistas a se elegerem com suas sobras. Uma pergunta não quer calar: é o povo que vota errado, como querem nos convencer, ou existe um sistema claramente distorcido de representação? Além disso, até as ultimas eleições havia outra variável; o financiamento de campanha.
Neste sistema eleitoral bastavam ter propostas boas e convincentes para se eleger? A resposta é não. Quem não teve dinheiro para fazer campanha não se elegeu. Na média, cada congressista que tomou posse em 2015 gastou R$ 1,6 milhão em sua campanha eleitoral. Quem não tinha, conseguiu quem financiasse.
Este é outro ponto determinante: financiamento privado de campanhas. No Brasil, até este ano era legal empresas financiarem campanhas. Pergunta, quando votamos somos movidos pelo quê? Resumidamente vejo duas motivações, uma nobre e outra nem tanto: a primeira, porque quero algo melhor para todos; a segunda, por algum interesse próprio. Empresa tem ideologia? Então o que motiva uma empresa privada a colocar dinheiro na campanha de alguém? Seja de que partido for. Seria prejulgar admitir que se uma empresa coloca seu dinheiro em alguma campanha ela quer algo em troca? Parece-me que não. Lewis Carroll, no século XIX quando escreveu Alice nos País das Maravilhas, poderia até admitir que pudesse existir país imune à corrupção, mas diga-se de passagem que nem ele ousou tanto. Não existe. O que temos que fazer é coibi-la ao máximo que as instituições forem capazes. Com instrumentos transparentes de acompanhamento, Corregedorias, Ministério Público, entidades civis atuantes, arcabouço jurídico adequado.
Aqui cabe uma ressalva: uma das bases da democracia é o Estado Democrático de Direito, e um dos seus pilares de sustentação é o acesso de qualquer cidadão à Justiça. Um levantamento produzido pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), comprova a falta de defensores públicos em 72% das comarcas brasileiras. Nessas localidades não existe serviço de assistência jurídica gratuita para quem não tem condições de pagar um advogado. Na justiça estamos ainda no período pré SUS.
Uma das grandes virtudes do sistema democrático é que as coisas aparecem, só assim para corrigi-las. Quem quer acabar com a democracia é quem quer se aproveitar do obscurantismo. Nestes tempos de polarização, a pergunta que temos que responder é o que fazer para sermos melhor representados e para que as mais diferentes matizes políticas e ideológicas consigam se expressar e canalizar as forças da sociedade para um parlamento de fato à altura das tarefas.
Tenho defendido veementemente que não podemos perder o foco na Reforma Política e mesmo ciente que o fim do financiamento privado de campanhas não resolve tudo, acredito que ajudará para que sejamos melhor representados num futuro próximo. Sem dúvida, boa parte do foco de falcatruas e coisas erradas, quando aparece na mídia, recai sobre os políticos, mas talvez, se todas as categorias profissionais fossem acompanhadas e monitoradas da mesma forma que são os políticos, temo que fosse possível atingir o mesmo nível de corrupção.
A corrupção não é um fenômeno recente, muito menos brasileiro, pelo contrario, temos assistido instituições autônomas que funcionam e assim deve ser. Mas isso não basta. Se não reformularmos nosso sistema político e representativo isso tudo se repetirá, como vem se repetindo ao longo dos anos. Temos que aprender com as experiências de outros países, as exitosas e as que não lograram êxito.
Em 2010 o mundo foi chacoalhado com a Primavera Árabe, uma onda de manifestações e protestos no Oriente Médio e no norte da África reivindicando liberdade e o fim da corrupção. Mas os países árabes não enfrentaram suas reformas democráticas e o resultado foi que em muitos países, partidos e lideres fundamentalistas que pregavam soluções fáceis para problemas complexos venceram as eleições.
Há também o caso da Itália com a Operação “Mãos limpas”, que se iniciou em Milão e levou ao fim a chamada Primeira República Italiana e ao desaparecimento de muitos partidos políticos, mas, também, sem enfrentarem as grandes reformas políticas. Qual foi resultado? Silvio Berlusconi, um excêntrico magnata italiano que lidera o Partido Conservador e foi condenado por corrupção e libidinagem.
Política não é futebol, não é São Paulo contra Corinthians. É com a política que conseguimos mudar a condição de vida das pessoas. É da prática política que se formam os governos que irão interferir diretamente nas nossas vidas. E são aqueles grupos sociais excluídos que mais precisam de governos que produzam políticas públicas distributivas equânimes, a saúde é uma entre tantas outras.
Temos que cuidar para que oportunistas e diversionistas não criem um cenário para que o foco principal do que tem que ser corrigido passe despercebido. Estamos em uma bifurcação histórica. Ou radicalizamos os fundamentos democráticos, na defesa intransigente do Estado Democrático de Direito, ou regredimos. Respeito, mas não me somo àqueles que vociferam que aqui em nosso país nada dá certo, que o Brasil não presta.
Pelo contrário, acho que se não somos os melhores, também não devemos ser tido como exemplo de país totalitário e medíocre. Somos exemplo para o mundo com um conjunto de políticas publicas que retirou da miséria absoluta milhares pessoas em tão pouco tempo. Isso pode não falar aos corações de alguns que foram privilegiados pela loteria biológica. O espermatozoide de nosso pai e o óvulo de nossa mãe nos colocou em famílias que nos proveram de casa, comida e acesso à educação. Além de sortudos somos privilegiados. Mas isso não nos faz melhor que ninguém. Nos Estados Unidos as coisas são melhores? Muita coisa é, mas nem tudo. A defesa do Senhor José Maria Marin, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, por exemplo, tencionou para que o extraditassem da prisão da Suíça para os Estados Unidos, e lá está em prisão domiciliar, no Trump Tower, um dos prédios mais luxuosos de Manhattan, avaliado em US$ 2,6 milhões. Imóvel comprado com recursos desviados da entidade. O lamentável acontecimento faz a justiça norte-americana ser pior ou mais injusta que a nossa? Não creio. Mas também não devemos nada a ninguém no quesito julgamento/pena. Às vezes me pergunto por que os brasileiros falam tão mal de nós mesmos. No fundo acho que não gostam do Brasil. E aqui não vai nenhuma dose de patriotada, até porque questiono a razão de existirem fronteiras. Mas então o que fazer? Voltando a Hamlet no seu mais famoso monologo “…a consciência nos torna covardes”, porque quanto mais envelhecemos mais temos medo, e quanto mais temos medo, mais tomamos consciência. O que significa que aprendemos que a vida têm riscos e que a ignorância, em sentido inverso, pode ser uma benção. Isso pode explicar porque as ditaduras são beatificadas por alguns e porque, se quisermos de fato mudar e transformar as coisas, nem sempre as soluções fáceis são as mais adequadas. Aqueles que sempre apostaram nas soluções fáceis, geralmente sectárias e intolerantes, também diziam que a juventude, por via de regra, é alienada. Estavam mais uma vez errados. Que bom. Os estudantes secundaristas de São Paulo estão mostrando àqueles que estão envelhecendo sem perder a vontade de lutar que o caminho é segui-los. Porque um Brasil radicalmente democrático e melhor para todos é possível, principalmente para quem mais precisa do Estado e de políticas públicas equânimes.
* GILBERTO PUCCA é Diretor de Saúde do Trabalhador e Saúde Ambiental do Ministério da Saúde Sanitarista; Mestre em Epidemiologia (Escola Paulista de Medicina) e Doutor em Ciências da Saúde (UnB).
(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/05/07/400-anos-da-morte-de-shakespeare-democracia-e-golpe/)

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