sábado, 9 de setembro de 2017

“A indústria não deveria fingir que está interessada em curar doenças”, diz prêmio Nobel britânico

(por Gilson Dantas)

Richard Roberts, ganhador do prêmio Nobel em medicina nos anos 1990, é uma conhecida personalidade britânica contemporânea e está longe de ser um esquerdista. Ele é a favor dos transgênicos e é um dos diretores de uma indústria de biotecnologia. Também defende toda ênfase nas verbas públicas na esfera da pesquisa, lado a lado com as pesquisas privadas. Portanto, se presume que não tenha lido textos marxistas seriamente.
No entanto, é dele a afirmação acima, de que as “companhias farmacêuticas não deveriam fingir que estão interessadas em curas, porque não estão. Até onde sei, não é nada frequente que financiem pesquisas à busca de curas”. [Esta afirmação encontra-se no site https://www.meneame.net/m/actualidad/c/15041078, em matéria de 14/7/14, intitulada: El fármaco que cura no es rentable para las farmacéuticas].
Em seguida ele esclarece que não está acusando as empresas de que estejam conspirando, isto é, tentando ativamente tornar as enfermidades crônicas [interpretaram isso em relação a ele, em matéria que circulou mundo afora].  Está “apenas” dizendo – o que já é mais que esclarecedor e grave – que curar não é seu objetivo…
Britânico, prêmio Nobel na área de Medicina e Fisiologia em 1993, nascido na Inglaterra em 1943, Richard J Roberts mudou-se para os Estados Unidos e foi laureado por seus estudos do DNA, pesquisando aqueles fragmentos de DNA que não têm, aparentemente, a ver com a informação genética e, nessa área fez grandes descobertas.
Evidentemente há vozes e amplos estudos que denunciam o papel da indústria capitalista de medicamentos, o seu lado sombrio. Como a Dra. Marcia Angell, autora de A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos, 2007 e o Dr. Peter C Gotzsche, autor de Medicamentos mortais e crime organizado, de 2016, e portanto trata-se de um debate já instalado contra a indústria de medicamentos capitalista.
É nessa perspectiva, aliás, que as alas mais conscientes do debate defendem diretamente a estatização de todas essas companhias, sua fusão em uma única [uma Farmobrás], sob controle dos trabalhadores; e muitos argumentam que enquanto medicamentos, equipamentos médicos e os próprios serviços de assistência médica forem mercadorias, forem privados, enquanto a medicina for mercantilizada, esse setor não sai do pântano histórico em que foi jogado pela ânsia inexorável da acumulação do capital.
Mas Sir Richard Roberts não pertence a esse campo mais consciente. No entanto, por isso mesmo, e ironicamente, sua denúncia deve ser levada em conta: ele fala a partir do ambiente farmacêutico, ele sabe do que está falando.
Segundo a fonte acima citada, ele teria declarado que “as companhias farmacêuticas têm pouco interesse em gastar muito para encontrar curas de algumas enfermidades porque uma vez que a cura fosse encontrada, o potencial de mercado estaria limitado enormemente. Preferem encontrar medicamentos que sejam efetivos contra enfermidades crônicas que os pacientes terão que continuar tomando durante muitos anos, e, de preferência, pelo resto de suas vidas”. Ele citou o caso dos anti-hipertensivos.
Justamente. Karl Marx dixit: o espectro anticapitalista de Marx circula por onde menos se espera, e hoje ronda também os ambientes da medicina do capital.
O Dr. Roberts, que trabalha na empresa New England Biolabs [fabricante norte-americana de reagentes biológicos para investigações nas ciências da vida, ] reitera que “habitualmente as companhias farmacêuticas tocam um modelo de negócios que não busca curas e que a exceção são os antibióticos”. E acrescenta que tais curas estão sendo investigadas na medicina acadêmica e o resultado “só se transfere para as empresas quando existe um modelo de negócios que faça sentido” para elas. Em português coloquial: só vai para a frente, se der lucro. É por isso que a medicina está tão degradada, imediatista, corrompida e a nossa vida tão medicalizada.
Também no El País, mês passado, o mesmo Roberts deu outra entrevista onde reiterou sua tese: ele “critica que a indústria farmacêutica diga que quer curar enfermidades quando não faz isso, porque não é negócio. E agregou que “à indústria do câncer lhe interessa mais tratar de parar a progressão do câncer do que eliminá-lo” [El País, 5/7/17, entrevista a Kristin Suleng, onde ele defende os transgênicos].
Outro prêmio Nobel, o americano Roger Kornberg [Nobel de química, 2006] vai na mesma linha, ao afirmar que as empresas farmacêuticas ficam diante de diferentes decisões, como a de “criar um remédio que cure uma doença com uma dose” ou outro que tenha que ser administrado em múltiplas doses. Para ele, os executivos-chefes da empresa “apoiarão a segunda opção, que é mais benéfica economicamente”. [A fonte é sua entrevista para a EFE, Valencia, Espanha, em 2/6/08, Cientistas vencedores de Premio Nobel dizem que clonagem humana será possível].
Nesta mesma entrevista, na Espanha, Richard Roberts também declarou que    acredita que os laboratórios farmacêuticos optam por fabricar um determinado medicamento porque é “proveitoso economicamente e não necessariamente para a saúde” [Quem leu O capital vai se sentir em casa, novamente, ao ouvir essa tese].
Em resumidas palavras, e contrariando aqueles defensores do capitalismo que alegam que a empresa apenas produz os medicamentos de que necessitamos [e, “naturalmente”, apenas pegam seu lucro básico], o que se vê, inclusive por parte de dois cientistas do stablishment, dois prêmios Nobel, é o contrário: se o medicamento é produzido em função do lucro, o resultado final passa a ser suspeito. Pode visar objetivos espúrios, desumanos, promovendo, no final de contas a permanência das doenças crônicas, mais lucrativas por conta do mercado cativo de medicamentos de uso continuado.
A velha conclusão se impõe: nenhuma ciência pode ficar isenta, e frequentemente não consegue deixar de se corromper [como “bad science”], se continuar nas mãos do capital.
* GILSON DANTAS é graduado em Medicina pela Universidade de Brasília; Doutor em Sociologia pela UnB.

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