quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O Papa reage aos conservadores e acusa: há críticas desonestas; querem dividir a Igreja


O Papa Francisco reagiu com vigor à ofensiva dos cardeais conservadores numa entrevista ao jornal Avvenire  e acusou-os de fazerem críticas desonestas para fomentar a divisão na Igreja e de apegarem-se a um “legalismo” de fundo ideológico. Ela foi concedida ontem, quinta (17) à jornalista Stefania Falasca e veiculada hoje, o que dá a dimensão do sentido de urgência; e foi publicada num “jornal interno” (o Avvenire pertence ao episcopado italiano) o que indica o desejo de aprofundar o debate dentro da Igreja. [Leia a íntegra da entrevista aqui. Traduzi alguns trechos dela ao longo desta reportagem].
Na missa matinal de hoje, na casa na Casa Santa Marta, o Papa continuou a dar o tom na luta que divide a Igreja; a missa foi concelebrada com os secretários dos núncios apostólicos, que são os representantes diretos do Papa nos países ao redor do planeta. Ele questionou-os e, na figura deles, a toda a hierarquia: “Como é a atitude de vocês em relação ao dinheiro? São apegados ao dinheiro?”. E completou: “O coração apegado ao dinheiro é um coração idolatra”. O dinheiro – afirmou o Papa – é “o anti-Senhor”. Este é um tema central para os católicos hoje, pois os conservadores rejeitam a opção da Igreja pelos pobres, definida por Jesus Cristo nos Evangelhos e reafirmada no Concílio Vaticano II (nos anos 1960). O Papa colocou o dedo na ferida, afirmando que as pessoas comuns, os cristãos na comunidade não perdoam um sacerdote “interessado, apegado ao dinheiro”. [Veja a cobertura da Rádio Vaticano à homilia do Papa clicando aqui.]

Na entrevista ao Avvenire, o Papa abordou a mais recente polêmica com os conservadores –a comunhão dos divorciados que voltaram a se casar. A questão remete à Exortação Amoris Laettitia (A Alegria do Amor), escrita por Francisco depois do Sínodo sobre a Família –um sínodo é uma reunião mundial de cardeais e bispos convocados pelo Papa para pensarem juntos sobre determinado tema, com assessoria de teólogos e, desta vez, leigos que atuam nas pastorais ou organizações vinculadas ao tema da família. O Sínodo encerrou-se em outubro de 2015 e o texto do Papa foi veiculado em abril de 2016.  Leia a pergunta do Avvenire e a resposta do Papa – ele tomou a iniciativa de falar sobre o assunto sem ter sido sido questionado diretamente pela repórter:
Pergunta: “O Jubileu da Misericórdia (decretado pelo Papa e que encerra-se agora) foi também o Jubileu do Concílio [Vaticano II, que completou 50 anos de seu encerramento em dezembro de 2015], onde o momento da sua recepção e o tempo de perdão coincidem…”
Resposta do Papa: “Fazer a experiência do perdão que abarca toda a família humana é a graça que o ministério apostólico anuncia. A Igreja existe apenas como instrumento  para comunicar às pessoas o plano misericordioso de Deus. No Concílio, a Igreja sentiu a responsabilidade de estar no mundo como sinal vivo do amor do Pai. Com a Lumen Gentium [Luz dos Povos, constituição dogmática do Concílio sobre a Igreja] a Igreja subiu às fontes de sua natureza, ao Evangelho. Isso moveu o eixo da concepção cristã de um certo legalismo, que pode ser ideológico, à Pessoa de Deus que se fez misericórdia na encarnação do Filho. Alguns -penso em certas respostas à Amoris Laettitia– continuam a não entender, [e colocam as coisas em termos] ou branco ou preto, mesmo que seja no fluxo de vida que você deve de discernir. O Concílio nos disse isto; os historiadores dizem-nos, no entanto, que um Concílio, para ser bem absorvido pelo corpo da Igreja, precisa de um século… Estamos na metade ainda.”
A resposta do Papa confronta diretamente um grupo de quatro cardeais conservadores (Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner) que lhe escreveram uma carta em setembro passado na qual, através de “perguntas”, apresentam um questionamento à Amoris Laettitia. No texto afirmam, e usam para isso documentos de João Paulo II, que a indissolubilidade do casamento seria uma “norma moral absoluta” para os católicos e, portanto, vetaria o direito de casais em segundas núpcias comungarem. Poucos dias atrás, alegando “falta de resposta” de Francisco, eles divulgaram a íntegra dos questionamentos –apesar de o Papa ter recebido o cardeal Burke em audiência privada depois do envio da carta. [Veja a íntegra da carta aqui].
Essa foi a segunda ofensiva dos conservadores contra Francisco em torno do Sínodo. Num episódio até hoje obscuro, 13 cardeais teriam enviado ao Papa uma carta pouco antes da segunda etapa do Sínodo, no início de outubro de 2015, com uma série de ameaças veladas, disfarçadas em “preocupações” –a notícia da suposta carta foi vazada por um jornalista ligado às correntes conservadoras da Igreja, Sando Magister, o mesmo que divulgou a carta de agora. [Veja a história deste episódio em reportagem de Andrea Tornielli, aqui].
A posição dos conservadores sofreu um golpe depois que o renomado teólogo espanhol José Maria Castillo publicou artigo intitulado Para tranquilidade dos cardeais  inquietos com o tema da indisolubilidade do matrimônio, demonstrando como, durante séculos, a Igreja admitiu o divórcio em determinados casos, sem traumas -o que, de fato, reduz o tema de “norma moral absoluta” para uma decisão no âmbito de um regramento, sob responsabilidade do Papa.

Mas os cardeais não se contiveram depois de escrever a carta e divulgá-la. Na quarta-feira (16), o vaticanista Edward Pentin, do site Infovaticana, veiculou entrevista com o líder dos conservadores, o cardeal americano Burke (que o Papa já havia removido em 2014 do poderoso Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica no Vaticano para a irrelevante Ordem Soberana e Militar de Malta). Ele afirmou que seu grupo poderá decretar “um ato formal de correção de um erro grave” contra o Papa, se ele não ceder às ameaças (aqui). Tal ato, que o cardeal afirma pertencer à tradição da Igreja é, segundo vários teólogos, uma quimera –pretexto para provocar a divisão na Igreja, que foi tema de uma segunda resposta dura de Francisco aos conservadores, no Avvenire.
A pergunta da jornalista referia-se ao incômodo causado nos conservadores pelas iniciativas ecumênicas do Papa, especialmente a aproximação com os luteranos, impulsionada fortemente pela presença de Francisco em Lund (Suécia), na virada de outubro para novembro, durante a comemorações dos 500 anos da Reforma Protestante. Os conservadores acusam o Papa (por enquanto nos bastidores) de fraqueza –ele estaria “contaminando” o catolicismo  com princípios protestantes. A resposta de Francisco:
“Eu não perco o sono [com as críticas]. Continuar no caminho daqueles que me precederam, sigo o Concílio. Quanto às opiniões, devemos sempre distinguir o espírito com o qual elas são expressas. Quando não há um espírito maledicente, elas também ajudam a caminhar. Outras vezes você vê imediatamente as críticas aqui e ali como justificativas para uma posição já tomada; não são honestas, são feitas com espírito mau para fomentar a divisão. Vemos claramente que certo rigorismo nasce de uma falta, do desejo de esconder dentro de suas armaduras sua própria triste insatisfação. Assista ao filme A Festa de Babette, que apresenta este comportamento rígido.” [A Festa de Babette é um filme dinamarquês de 1987 –veja o trailer aqui]
Ainda ao falar sobre o diálogo com os luteranos, o Papa fez referência a uma série de iniciativas comuns entre católicos e luteranos vinculadas à opção pela caminhada com os pobres e que esta opção, em si mesma, traça uma trajetória de unidade: “Servir aos pobres quer dizer servir a Cristo, porque os pobres são a carne de Cristo. E, se servimos aos pobres juntos, digo que nós cristãos encontramo-nos unidos, ao tocar as chagas de Cristo”.
Em outro momento da entrevista, o Papa afirmou uma visão da Igreja, em contraposição ao conceito conservador de um edifício dogmático de conteúdo moralizador: “A Igreja é o Evangelho, é a obra de Jesus Cristo. Não é um caminho de ideias ou uma ferramenta para afirmá-las.” O Papa disse que sob seu comando a Igreja não praticará proselitismo (e ele refere-se a Bento XVI como inspirador desta postura), pois “a Igreja não é um time de futebol á procura de torcedores”.
Diz-se de Francisco: “um dia histórico”, “um discurso histórico”, “uma atitude histórica” –mas são tantos gestos, pensamentos e ações históricas que está cada dia mais difícil nomeá-las assim. A entrevista ao Avvenire e a homilia matinal em Santa Marta inscrevem-se nesta categoria.
Quanto aos conservadores, há que se esperar os próximos passos. O fato é que no passado eles usaram e abusaram de punições contra padres e bispos progressistas por muito menos que isso. Se os progressistas tivessem afrontado um papa do agrados dos conservadores como eles fazem com Francisco agora, eles estariam em coro estridente exigindo sua excomunhão.
[Por Mauro Lopes]

(fonte: http://outraspalavras.net/maurolopes/2016/11/18/o-papa-reage-aos-conservadores-e-acusa-ha-criticas-desonestas-querem-dividir-a-igreja/)

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