sábado, 20 de maio de 2017

Aleppo-Amsterdã-Rio de Janeiro

MARCELO GRUMAN*

Recentemente, o jornal O Globo publicou uma reportagem a respeito do impacto da guerra civil, que já dura seis anos, na saúde mental das crianças sírias. De acordo com a ONG Save the Children, grande parte delas sofre de estresse tóxico (ocorre quando a criança passa por adversidades frequentes ou prolongadas), estresse pós-traumático e situações extremas, como autoflagelação, tentativas de suicídio e até a perda da fala. Dois terços das crianças ouvidas perderam um ente querido, tiveram a casa bombardeada ou se feriram. O pai de um menino de três anos diz que o filho “acorda assustado no meio da noite, acorda gritando”. Escolas viraram escombros, abrigam refugiados ou foram transformadas em bases militares e/ou de tortura. Um professor afirmou que as crianças “esperam morrer para ir ao paraíso e estar, assim, em um lugar quente, comer e brincar”.
(Bana al-Alabed)
Uma dessas crianças, até pouco tempo, resistia com a família na parte leste da cidade de Aleppo, arrasada pela artilharia do exército sírio e dos rebeldes. Seu nome, Bana al-Alabed. Sua idade, sete anos. Nestes tempos modernos, de informação em tempo real, Bana relatava numa conta do Twitter, administrada por sua mãe, através de um celular carregado com energia solar (energia elétrica é raridade em Aleppo) o dia-a-dia de terror vivido por sua família e vizinhos. Ela dividia seu medo dos bombardeios e publicava fotos de edifícios destruídos. No dia 4 de outubro de 2016, publicou a foto de um jardim em escombros, era o jardim de sua casa. Em outra postagem, ao lado dos dois irmãos menores, sentados no chão, apareciam escrevendo “para esquecer a guerra”. Bana foi evacuada de Aleppo no final de 2016, junto com sua família. Ela ficou conhecida como a “Anne Frank de Aleppo”, por relatar os horrores da guerra.
(Anne Frank)
A Anne Frank “original” foi uma judia alemã cuja família abastada morava na cidade de Frankfurt, obrigada a refugiar-se na Holanda após a subida de Hitler ao poder em 1933. Ela tinha apenas quatro anos quando emigrou. Quando os alemães invadiram a Holanda, em 1940, a situação dos judeus holandeses se deteriorou rapidamente, e em 1942 a família Frank decidiu esconder-se no Anexo de uma fábrica em Amsterdã. Por dois anos – de 20 de junho de 1942 a 21 de julho de 1944 – Anne Frank expressou seus medos, angústias, decepções, raivas, alegrias e esperanças nas páginas de um diário, carinhosamente chamado de Kitty. Kitty era sua amiga, sua confidente.
Os relatos de Bana e o diário de Anne Frank são exemplos do processo de desumanização, animalização ou coisificação do “outro”, alvo da intolerância, do ressentimento, da ignorância, da arrogância dos que se incumbem de espalhar a verdade, doa a quem doer. Retirando-se qualquer traço de humanidade do “outro”, impossibilitando qualquer tipo de identificação, de compartilhamento de valores e visões de mundo, o homicídio transforma-se num simples dano colateral ou dever a cumprir.
A saúde mental de Anne Frank e dos demais moradores do Anexo também foi afetada pela guerra e pelo medo de serem descobertos a qualquer momento pelas tropas alemãs, conforme as descrições dos dias 10 de março e 1º de maio de 1943:
Ainda não superei meu medo de aviões e tiros, e me arrasto até a cama de papai quase todas as noites, em busca de conforto. (…) De repente, ouvimos uma rajada de metralhadora, e isso é de vez pior do que os canhões antiaéreos.
Hoje à noite, os canhões atiraram tanto que tive de juntar meus pertences quatro vezes. Hoje enchi uma mala com as coisas de que vou precisar caso tenha de fugir, mas, como mamãe observou corretamente: “para onde você iria?”.
Qualquer semelhança com a dor e o sofrimento das crianças sírias, que acordam gritando no meio da noite, não é mera coincidência.
No dia 6 de junho de 1944, o famoso “Dia D”, dia da invasão da Normandia pelas tropas aliadas, foi noticiado pela rádio BBC. Anne escreveu que, talvez, pudesse voltar a estudar em setembro ou outubro. Um mês e meio depois, no dia 21 de julho, transbordava de otimismo:
Finalmente estou ficando otimista. Até que enfim, as coisas vão bem agora! De verdade! Ótimas notícias! Tentaram assassinar Hitler e, pela primeira vez, não foram comunistas judeus ou capitalistas ingleses, mas um general alemão que não somente é um conde, mas também é jovem. (…) Não posso evitar, a perspectiva de voltar à escola em outubro está me deixando feliz demais para ser lógica!
Na manhã do dia 4 de agosto, delatados, os moradores do Anexo foram descobertos e seu destino, selado. Anne Frank e sua irmã, Margot, foram transportadas de Auschwitz para o campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha, onde morreram possivelmente em consequência de uma epidemia de tifo que se espraiou no inverno de 1944.
Corta para a cidade do Rio de Janeiro, século XXI, 2017. O número de Anne Franks se multiplica exponencialmente. Munidos de celulares, moradores das periferias, jovens e adultos, especialmente das áreas da cidade dominadas pelo tráfico de drogas e pelas milícias e que vivem em constante estado de sítio, impedidos de sair de casa, de trabalhar, de levar e trazer os filhos à escola, escolas estas encravadas no meio do fogo cruzado entre policiais e bandidos, bandidos da facção X e bandidos da facção Y, gravam seu cotidiano de terror, desespero e impotência, compartilhando-o em tempo real nas redes sociais.
Há pouco mais de um mês, Maria Eduarda, uma adolescente de treze anos morreu dentro de uma escola municipal, atingida por disparo de arma de fogo. Professores e alunos relatam cotidianamente o estado de tensão permanente sob o qual são obrigados a trabalhar e estudar, as aulas improvisadas nos corredores das escolas, teoricamente protegidos de “balas perdidas” que, eventualmente, perfuram as janelas, o desespero dos alunos, obrigados a se jogarem no chão, em busca de proteção dos tiros que vêm de todos os lados.
As estórias das crianças sírias, Anne Frank e Maria Eduarda se cruzam num ponto: a escola. E não é esta tal de Escola sem Partido, não, pretensamente neutra, inodora, asséptica, com nojinho da realidade. É a escola ideológica, sim. Educar para libertar de preconceitos, de estigmas, incorporar valores caros à cidadania, o respeito ao diferente ainda que dele discordemos até a última raiz dos cabelos. Educar para a paz.
Viva a escola. Viva a escola pública.
Educação ou barbárie.
* MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Atualmente é administrador cultural da Fundação Nacional de Arte (Funarte). Blog: https://desconstruindomarcelo.blogspot.com.br/
Links:
  1. https://oglobo.globo.com/mundo/na-siria-80-das-criancas-sofrem-de-estresse-pos-traumatico-21020906 (Crianças sírias)
  2. http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,conheca-bana-alabed-menina-siria-de-7-anos-caracterizada-como-a-nova-anne-frank,10000093069 (a “Anne Frank de Aleppo”)

(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2017/05/13/aleppo-amsterda-rio-de-janeiro/)

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