O Sindicato dos
Jornalistas Profissionais de Minas Gerais lamenta a saída de João Paulo
Cunha do comando da editoria de Cultura do jornal Estado de Minas, mais
uma vítima da censura que impera nos grandes meios de comunicação e
grassa em Minas Gerais, e repudia o cerceamento à liberdade de
expressão.
Reconhecido como um dos mais brilhantes jornalistas e intelectuais mineiros, dono de uma vasta cultura e de um texto brilhante, João Paulo pediu demissão hoje à tarde. A decisão foi tomada depois da comunicação por parte da direção do jornal de que não poderia mais escrever sobre política na coluna que assinava semanalmente no caderno Pensar.
Seu último texto foi publicado no dia 6/12. Intitulado “Síndrome de Capitu”, critica a falta de uma oposição responsável no Brasil. “Há grandes projetos que impulsionam uma vida e moldam expectativas de futuro, algo que ganhou o belo nome de utopia”, diz um trecho do texto. E foi em nome dessa utopia que ele não aceitou mais essa imposição. Uma salva ao João.
Abaixo a íntegra de sua última coluna.
Reconhecido como um dos mais brilhantes jornalistas e intelectuais mineiros, dono de uma vasta cultura e de um texto brilhante, João Paulo pediu demissão hoje à tarde. A decisão foi tomada depois da comunicação por parte da direção do jornal de que não poderia mais escrever sobre política na coluna que assinava semanalmente no caderno Pensar.
Seu último texto foi publicado no dia 6/12. Intitulado “Síndrome de Capitu”, critica a falta de uma oposição responsável no Brasil. “Há grandes projetos que impulsionam uma vida e moldam expectativas de futuro, algo que ganhou o belo nome de utopia”, diz um trecho do texto. E foi em nome dessa utopia que ele não aceitou mais essa imposição. Uma salva ao João.
Abaixo a íntegra de sua última coluna.
Síndrome de Capitu
Por João Paulo Cunha
Existem
duas verdades aparentemente óbvias que, no entanto, não têm ficado
suficientemente claras para muita gente: o país mudou e a eleição já
acabou. A insistência em dar continuidade ao processo que elegeu Dilma
Rousseff poderia ser apenas um luto mal vivido, mas tende a se tornar
perversa no campo político. Por outro lado, a recusa em enxergar a nova
configuração da sociedade, resultado de seguidas políticas de
distribuição de renda e inclusão social, pode gerar um impulso no mínimo
grotesco em suas alusões reativas e chamamentos à ditadura.
É
preciso ir adiante. A oposição, certamente, saiu fortalecida do
resultado eleitoral bastante parelho. Mas corre o risco de jogar fora
esse crescimento quantitativo em nome de um comportamento pouco
produtivo em termos políticos. Em vez de jogar com seu eleitor fiel,
interpreta os votos de acordo com suas conveniências e joga para a
plateia pelos meios de comunicação, sem perceber que essa falácia já
mostrou ser um paradoxo invencível: tem mais brilho que consistência,
mais efeito que substância, mais eco que voz.
A
oposição de hoje parece viver, no campo da política, o que Bento
Santiago, o Bentinho de Dom Casmurro, de Machado de Assis, viveu em seus
tormentos de alma: se perde na fantasia da traição (mesmo que ela tenha
sido real). Para lembrar sumariamente o enredo do romance, Bentinho se
apaixona por Capitu, desde logo apresentada como portadora de “olhos de
ressaca”. São jovens de classes sociais distintas. Um arranjo permite o
casamento. Logo Bentinho, já pai e bem posto na vida como advogado,
desconfia que está sendo traído pela mulher com o melhor amigo, em quem
vê semelhança com o filho. O casal se separa, o filho morre e Bento,
sozinho, leva adiante sua sina de ser casmurro e sofrer com a
desconfiança até o fim da vida.
Machado
de Assis, como sempre, ao falar de seus personagens, está figurando a
sociedade de seu tempo. Bentinho não sofre só pela traição, mas porque
não entende que o mundo mudou. Não pode aceitar que a sociedade
republicana deixou para trás as amarras elitistas do Segundo Reinado e
da escravidão. Bento não reconhece a mulher, a sociedade, a história.
Não pode aceitar que ela tenha uma vida independente e autônoma. Tudo
que ele não compreende o ameaça. Capitu não é apenas a mulher, mas tudo
que perdeu em seu mundo de referências que se esvaem. Mais que sexual, a
traição é histórica. Homem de outro tempo, só resta a ele tentar
convencer ao leitor e a si próprio de seu destino de vítima. E soprar um
melancólico saudosismo acerca dos tempos idos, que busca reconstruir em
sua casa feita à semelhança do lar da meninice.
O
Brasil tem uma recorrente síndrome de Capitu: tudo que a elite não
tolera se torna, por meio de um discurso marcado pela força jurídica e
da tradição, algo que deve ser rejeitado. Eternos maridos traídos. A
tendência de empurrar a política para os tribunais é uma consequência
desse descaminho. Assim, tudo que de alguma forma aponta para a mudança e
ampliação de direitos é considerado ilegítimo e, em alguns momentos,
quase uma afronta que precisa ser questionada e combatida. Foi assim com
a visibilidade dada aos novos consumidores populares (que foram
criminalizados em rolezinhos ou objeto de ironia em aeroportos), com as
cotas raciais para a universidade, com a chegada de médicos estrangeiros
para ocupar postos que os brasileiros, psicanaliticamente, denegaram.
O
romance de Machado de Assis tem ainda outro personagem curioso para a
sociologia e psicologia do brasileiro, o agregado José Dias. Trata-se de
um homem que vive às expensas da família de Bento e que, por isso, não
cessa de elogiar quem o acolhe. Típico representante de certa classe
média, ele é o bastião dos valores da burguesia da época, da qual só
participa de esguelha. Mais burguês que os burgueses, em sua
subserviência, ele gasta os superlativos e a vida a invejar e defender
os “de cima”, com pânico de ser confundido com os “de baixo”. Epígonos
de José Dias, hoje, são os que amam Miami, levam os filhos para ver o
Pateta e participam de passeatas pedindo a volta dos militares.
Leviandade
Mas
o que a síndrome de Capitu tem a ver com a política brasileira de hoje?
Em primeiro lugar, ela explica por que, em vez de armar uma oposição de
verdade, os partidos derrotados tentam inviabilizar a sequência do
processo democrático. Em segundo lugar, pela defesa da dupla moral, que
desculpa os erros do passado por causa da dimensão dos desvios de hoje,
numa reedição do estilo udenista e despolitizador de analisar a
conjuntura. Tudo que pode de alguma forma macular a oposição é
considerado “sórdido” e “leviano”, numa substituição da política pela
moral de circunstância. A corrupção, com sua espantosa abrangência,
precisa ser combatida em toda sua dimensão e arco histórico. Nenhum
culpado pode ficar de fora, de empresários a políticos de todos os
partidos.
Por fim, a personagem
machadiana ajuda a explicar a fixação em torno de determinados temas –
no romance, é a traição, na vida política atual, é a inflação –, que são
muito mais derivações que propriamente o que de fato interessa. A
escolha dos ministros da área econômica mostrou como mesmo um governo
popular e eleito democraticamente confirma as intuições de Machado de
Assis. A excessiva submissão aos interesses rentistas pode ser um recuo
estratégico. Mas é um recuo. Uma capitulação.
Economia
não é uma ciência exata e, muito menos, isenta de componente
ideológico. Um governo de esquerda precisa de uma política econômica de
esquerda. Além do equilíbrio macroeconômico, o mais importante é apontar
as estratégias de distribuição de renda e de investimento na área
social. O deus Mercado não pode falar mais alto que os filhos de Deus.
No complexo tecido que sustenta a governança, a presença das forças
populares não pode ser colocada em segundo plano, como vem sendo até
agora. A excessiva sujeição ao cálculo do apoio político está na base da
grande corrupção que hoje enoja a todos. Por isso a reforma política
popular se tornou a agenda prioritária da sociedade.
A
oposição, por sua vez – e o senador Aécio Neves, candidato derrotado
como seu nome de maior destaque –, tem uma tarefa a cumprir: dar um
passo à frente no jogo político, com a grandeza que o momento requer. O
que ainda está devendo.
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