por Jaime Pinsky
O cabelo bem penteado da minha irmã, cuidadosamente dividido em duas
tranças feitas com capricho pela minha mãe provocava meus piores
instintos. Assim que podia corria atrás e puxava, sem dó, aquele
trançado e curtia os gritos da menina, dois anos mais velha que eu, mas
já bem menor. Mas, falando sério, e de uma ótica de adultos, sei que não
era ela que me provocava, mas eu a ela. Ou não?
A garota caminha despreocupada no campus universitário. Um homem surge
por detrás dos arbustos com uma faca na mão (pode ser um revólver, ou
apenas as mãos brutais) e ameaça matá-la se não for com ele até um canto
escuro nas proximidades. Indiferente aos soluços da menina ele levanta a
saia dela, arranca sua calcinha com violência e a estupra. Mais tarde,
acompanhada do pai, a garota vai dar queixa em uma delegacia. O escrivão
pergunta o que ela vestia. Queria saber como o homem tinha sido
provocado para agir da forma como agiu.
Um bando de assassinos fundamentalistas irrompe na sala de reunião do
jornal satírico Charlie Hebdo, em Paris, e mata quase todos os membros
da redação. Laurent Sourisseau sobrevive, torna-se diretor de redação e
comanda o reerguimento do semanário. Vem ao Brasil, é convidado a ficar
no meio da Roda Viva, da TV Cultura. Alguém pergunta ao sobrevivente do
massacre se o jornal não tinha feito alguma provocação para merecer tal
reação por parte dos fanáticos que agiram alegando desrespeito à sua
religião.
Nos dois casos, incrivelmente, há quem defenda a esdrúxula tese de que a
culpa é da vítima. Ora, ninguém é obrigado a comprar um jornal, ele vai
para as bancas, lê quem se dispõe a pagar por ele. Se houver abuso
existe uma lei acessível a todos os cidadãos, uma vez que a França é um
país democrático onde impera, desde 1905, a separação entre religião e
Estado. Da mesma forma, as mulheres têm, felizmente, no Brasil, o
direito de se vestir da maneira que julgarem mais adequada. Como na
França, nosso Estado é laico. Há uma separação constitucional entre
Estado e religião. Cada cidadão segue a crença que quiser, não segue
nenhuma, ou (e viva o Brasil) segue pedaços de cada uma. Os
sincretismos, por aqui, são muito comuns. Nenhuma mulher precisa usar
véus ou burcas (que, de resto, não são obrigatórias sequer para todas as
muçulmanas), veste o que acha mais bonito, mais adequado, mais arejado,
mais econômico, veste o que achar mais prático, veste, enfim, o que
quiser. Justificar violência sexual pela vestimenta da mulher (alegando
provocação) é um absurdo tão grande quanto achar que fundamentalistas
malucos têm o direito de matar cartunistas.
Provocação? Vou dizer o que é, realmente, provocação. Provocação era
queimar mulheres sábias, alegando serem bruxas, quando na verdade
desfiavam o monopólio do saber da Igreja ao ministrar ervas medicinais a
doentes na Idade Média. Eram elas as provocadoras? Provocação era
perseguir e matar cristãos novos em Portugal utilizando o instrumento da
Inquisição para impedir o crescimento de uma classe mercantil forte.
Eram eles que provocavam? Provocação era espancar e até matar escravos
de origem africana no Brasil, ou seriam provocadores os escravos quando
praticavam a resistência ativa ou passiva? Ou teriam sido os
palio-cristãos que provocavam os romanos com sua fé monoteísta? Não, os
provocadores eram os romanos pagãos que atiravam os adoradores de Jesus
aos leões. Ou, quem sabe ainda, eram os judeus (comunistas e
capitalistas ao mesmo tempo, na retórica hitlerista) que provocavam os
nazistas e não estes, ao planejar e executar o maior genocídio que a
História já registrou?
Vamos parar de buscar justificativas para os assassinos, os genocidas,
os estupradores. Afinal, eles assassinaram, praticaram genocídio,
estupraram. Nada pode justificá-los. Podemos, isto sim, buscar
entendê-los, para tentar impedir outras ações do mesmo gênero. E
puni-los. O nosso lado deve ser o do agredido, do violentado, daquele
que teve seus direitos usurpados. Afinal, por isso e para isso somos
civilizados. Temos que consolar o agredido, tentar fazer com que ele
supere as sequelas da violência de que foi vítima.
Já para os não civilizados, não nos cabe justificá-los, apenas esperar que evoluam.
Jaime Pinsky, historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros
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