segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Invasões bárbaras

MARCELO GRUMAN*

“Papai, ‘odeio’ é uma palavra feia, não é?”.
“Sim, filho. É uma palavra muito forte”.
“Então eu odeio o carnaval”.
“Mas por que, meu filho?”
“Porque tem muito barulho e eu não consigo achar os meus amigos (no bloco de rua)”.

Quando eu era pequeno, na longínqua década de 1980, lembro que carnaval era sinônimo de desfile de escolas de samba na passarela da Marquês de Sapucaí. Brincar o carnaval, como se diz, resumia-se aos bailes dos clubes, a maior parte deles restritos a adultos, e à própria passarela do samba. De lá para cá, as coisas mudaram. O espaço público foi retomado pela população carioca a partir do início dos anos 2000, que passou a ser invadido, durante o período momesco, por dezenas de blocos carnavalescos de rua. Para termos uma ideia, em 2011 desfilaram pelas ruas da cidade, da zona norte à zona sul, 476 blocos, número que alcançou, neste ano de 2016, inacreditáveis 505 agremiações. E há para todos os gostos e faixas etárias. Para os pequenos, por exemplo, a diversão é garantida no “Cordão umbilical” e no “Largo do Machado, mas não largo do suquinho”.
O carnaval de rua faz a economia local girar, principalmente o segmento de bebidas alcoólicas, consumidas aos milhares de litros desde cedo, antes do meio-dia (horário limite extraoficial que os pinguços de plantão estabelecem para “iniciar os trabalhos”), afinal de contas, em algum lugar do planeta, já é de tarde. Eu mesmo, admito, faço parte desde grupo de beberrões diurnos. Também aproveitam para ganhar um dinheiro extra os pipoqueiros, os vendedores daquela espuma em aerossol insuportável que leva ao desespero a oftalmologista pediátrica do meu filho, o vendedor de algodão doce e muitos outros ambulantes que oferecem de tudo a preços não tão convidativos, inflacionados pela imensa demanda de foliões.
O carnaval também é a época do ano em que transgredimos determinadas regras sociais que, antes ou depois, são punidas, minimamente, com a marginalização social. Pelo segundo ano, saio pela porta da frente do meu prédio vestido de bailarina, de cabeça erguida, com os pelos do peito à mostra. Os porteiros não fazem troça, pelo menos não na minha frente, sabem que é parte do ethos carnavalesco a inversão de papéis sociais, não me consideram um louco. É curioso que seja mais comum homens se travestirem de mulher do que o contrário. Minha esposa gosta de sair de Branca de Neve. A maioria dos blocos toca tradicionais marchinhas de carnaval, cujas letras o público, em geral, já sabe de cor e salteado. Dificilmente vê-se qualquer tipo de confusão, empurra-empurra, há um clima de alegria.
E meu filho “odeia” o Carnaval. Eu o entendo.
A quantidade de foliões cresceu exponencialmente, e muitos blocos de rua ficam superlotados porque passam por ruas estreitas ou, simplesmente, porque o espaço em que ficam parados não comporta a multidão que resolver brincar o carnaval ali. Muitas vezes não é possível ouvir o som da banda, de tão longe que ela fica dos retardatários, transformado num barulho incompreensível.
Se o barulho ficasse restrito ao “horário comercial”, estendido, digamos, até às onze horas da noite, uma colher de chá, vá lá. Mas a desordem é total. Entretido num dos meus sonhos, sou acordado às duas horas da manhã com sons de bumbos e trompetes e a cantoria de dezenas de pessoas que passavam na frente do meu prédio. Aparentemente, não foram incomodados pela polícia. Este não foi um caso isolado, um amigo que mora próximo também se espantou quando começou a ouvir sons de instrumentos musicais próximo de meia-noite.
O que dizer da sujeira? As toneladas de lixo que se acumulam pelas calçadas mostram a (des)consideração e o (des)respeito que o cidadão carioca e também os turistas têm pela cidade. Ok, a quantidade de caçambas de lixo e de lixeiras pode não ser suficiente, mas a quantidade de dejetos de todo tipo, o rastro de imundície que os blocos de rua deixam é tamanha que fica difícil acreditar que apenas o poder público tem responsabilidade sobre o caos urbano rotineiro que se instala durante o carnaval. O pior é o dia seguinte aos cortejos, mesmo após a passagem da ala dos bravos garis da companhia de limpeza urbana, que fazem o possível para entregar o espaço público mais ou menos inteiro para mais um dia de folia, quando os moradores do entorno sentem aquele odor nauseabundo de chorume misturado com restos de cerveja, urina e outros líquidos indecifráveis, odor este potencializado em dias de sol forte. Pior ainda para as crianças do meu prédio que, se quiserem jogar bola, andar de bicicleta ou skate na praça em frente, têm de colocar capacete, joelheiras e tornozeleiras para evitar que as dezenas de cacos de vidro carinhosamente deixados no dia, noite e madrugada anteriores não lhes cause cortes mais ou menos profundos. Alalaô!!!
Na sexta-feira anterior ao carnaval, ao sair do trabalho, no centro da cidade, passei por vários prédios protegidos por tapumes de madeira ou metal. A princípio, imaginei que fossem obras, mas, logo em seguida, lembrei que, por ali, passariam diversos blocos de carnaval. Os condomínios estavam, isso sim, protegendo-se dos foliões por medo de danos ao patrimônio público e privado. Em lugares civilizados, este tipo de proteção física faz sentido quando a cidade se prepara para eventos climáticos, como tufões e maremotos. Na cidade maravilhosa, a preparação não é contra a fúria da natureza e sim contra os animais humanos mesmo. Pela cidade, canteiros de plantas são cercados para evitar a destruição por parte dos “mais exaltados”, na praça em frente ao meu prédio a fonte de água centenária também teve de ser cercada por estruturas de ferro. Nossos bárbaros são distintos daqueles enfrentados pelos romanos, os nossos vêm do interior de nossas fronteiras, são habitantes da cidade, são nossos vizinhos de porta que, aparentemente, não se incomodam em viver no meio do lixo, afinal, a rua não é de ninguém.
O professor Micael Herschmann, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, escreveu um interessante artigo em que analisa o crescimento do carnaval de rua na cidade do Rio de Janeiro no início do século XXI. Ele cita, em determinado momento, a presidente da Sebastiana, a Associação Independente dos Blocos da Zona Sul, Centro e Santa Teresa, Rita Fernandes, que credita, dentre os fatores para o boom sem precedentes do carnaval de rua o aumento da autoestima do carioca que, na visão do professor, é mais consequência do que causa da “retomada dos cortejos de rua”.
Fico me perguntando que carioca em sã consciência se orgulha do chiqueiro em que parte da cidade se transforma em apenas quatro dias, como que arrasada por um furacão. Nos estertores do carnaval, um grupo fazia um churrasco improvisado dentro do parquinho infantil localizado na praça em frente de casa, debaixo do nariz da guarda municipal e de fiscais da gloriosa Secretaria Especial de Ordem Pública. Casais de jovens sentavam-se na mureta do parquinho, já com vários tijolos destruídos, bebendo cerveja em garrafas delicadamente descartadas sobre as plantas que circundam o espaço.
Vai além da minha compreensão o comportamento destes bárbaros modernos que, apesar de habitarem a cidade, insistem em maltratá-la, em envergonhá-la. O carnaval não pode servir de salvo-conduto para tamanha afronta à cidadania. Mas quem se importa, não é mesmo? As Olimpíadas vêm aí. Pão e circo, pra variar.

Referências bibliográficas
HERSCHMANN, Micael. Apontamentos sobre o crescimento do Carnaval de rua no Rio de Janeiro no início do século 21. Intercom, Rev. Bras. Ciênc. Comun., São Paulo, v. 36, n. 2, p. 267-289,Dec. 2013.
* MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ).

(fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2016/02/20/invasoes-barbaras/)

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