domingo, 3 de abril de 2016

“Combate ao Terror”, fracasso anunciado


Em resposta a atentados na Europa, Ocidente tornou-se menos livre e tolerante; mais brutal e xenófobo. É exatamente o que os fundamentalistas desejavam
Por Roberto Savio | Tradução: Inês Castilho

O massacre de Bruxelas causou uma reação a curto prazo que não considera uma projeção mais estratégica. Todo o debate é agora sobre segurança, reforço policial, novas estratégias militares, como se o terrorismo pudesse ser resolvido simplesmente como uma questão de ordem pública.
Seria também necessário adotar um enfoque mais global e integral, e aceitar que estamos diante de um problema que deve ser abordado por vários ângulos. Isso faz com que este artigo enfrente o costumeiro problema da falta de espaço, para uma análise mais profunda. Vou pedir, portanto, ao leitor que abra os links de alguns artigos anteriores, para assim contar com mais informação sobre questões impossíveis de tratar adequadamente no presente artigo.

1) Falta de debate político. Vemos as lideranças políticas europeias mobilizando-se, depois de cada evento, somente com alguma declaração retórica sobre a solidariedade e o horror, mas sem esforço nenhum para construir uma resposta comum e singular. É supreendente ver que as autoridades francesas e belgas nem sequer tratam de vincular as ações dos terroristas com sua vida anterior e seus antecedentes, quando é realmente necessário fazer uma análise sociológica e cultural, além de adotar medidas meramente policiais. Ainda que isso seja importante, não é relevante para o debate político (ver link).

2) Não se faz nenhum esforço para explicar que o terrorismo islâmico é, antes de mais nada, uma batalha interna do mundo muçulmano, empregada na Europa somente por conveniência. O ramo sunita é o principal do Islã, com 88% dos muçulmanos. Mas não foi descoberto nenhum terrorista que não fosse praticante do wahabismo, ou ramo salafista dos sunitas, originário da Arábia Saudita, de onde foi ativamente exportado pela família real Al-Saud.

Riad construiu mais de 1.600 mesquitas e dotou-as de pessoal e imans salafistas, gastando anualmente mais de 80 milhões de dólares para apoiar seu ramo sunita. Para os salafistas, várias outras correntes do Islã são consideradas infieis, como os Sufi e os Yazidis. Os xiitas são o principal inimigo. A maioria dos xiitas vive no Irã, o principal inimigo da Arábia Saudita. Esses dois países lutam entre si através das guerras subsidiárias ou guerras por procuração, desde a Síria até o Iemên, com um número de vítimas milhares de vezes superior ao de todas as vítimas dos atentados na Europa. Qualificar todo o Islã de promotor do terrorismo é, portanto, um erro dramático. (Veja o link)

3) Até que seja controlada pela Rússia e pelos Estados Unidos, a disputa entre a Arábia Saudita e o Irã continuará em todo lugar, ou até que a Arábia Saudita entre numa crise grave. Seu nível de gastos atual não será, em breve, compatível com o preço do petróleo. O Fundo Monetário Internacional já avisou Riad que, a menos que reduza seus gastos, irá à falência em 10 anos. Até agora, a Arábia Saudita tem sido apoiada por todo o Ocidente, em especial pelos Estados Unidos, por sua importância como principal exportador de petróleo.

O painel de especialistas da ONU no Iêmen documentou violação das leis de guerra em 119 voos de combate da coalizão [liderada pela Arábia Saudita, que invadiu o país]. A informação é da Human Rights Watch, que pede, junto com a Anistia Internacional e outras organizações, um embargo sobre a venda de armas a Riad. Mas a Arábia Saudita é o segundo maior importador de armas do mundo.
De qualquer modo, é muito pouco provável que a Arábia Saudita e seus aliados, emires e xeques dos países do Golfo, possam assumir a liderança do mundo sunita, porque eles são seguidores do ramo intolerante do Islã e, a longo prazo, não parecem capazes de competir com um Irã muito maior e mais desenvolvido. Mas, no momento, todo o mundo tem feito vistas grossas às responsabilidades da Arábia Saudita na difusão do salafismo.

4) O salafismo nos leva ao ISIS, que assumiu essa tendência do Islã como religião oficial, inclusive radicalizando-a ainda mais. Sem dúvida, existe um consenso crescente de que o Estado Islâmico está usando a religião como meio para o recrutamento, reunindo todos aqueles que se sentem frustrados com o secularismo e a modernização. O ISIS, como entidade tangível, poderia ser derrotado por duas brigadas mecanizadas em poucas semanas, segundo especialistas militares.

Mas isso seria dissolvê-lo entre as 600 mil pessoas que vivem em seu território, resultando num excelente apoio a sua teoria: a de que os muçulmanos estão sempre sujeitos aos cruzados cristãos, que instalaram reis e emires em seus tronos e manipularam o mundo árabe com eficácia, segundo seus interesses.
Os cruzados nunca aceitarão o poder de uma autêntica entidade árabe, e continuarão a controlar o mundo árabe por meio de seus marionetes. Essa visão e o chamamento à guerra santa contra os invasores e governos árabes continuarão depois da morte do ISIS como entidade territorial, porque tocam um ponto sensível em todo o mundo árabe, já que se baseiam em fatos históricos. Ou seja, o chamamento do ISIS sobreviverá ao Califado. (Veja o link)

5) A reação da Europa foi não intervir seriamente contra o ISIS, mas dar apoio às facções na guerra da Síria. Sua responsabilidade na onda de refugiados que fogem da Síria e da Líbia são claras, mas sem consequências. (Veja este link)  Além de adotar uma decisão totalmente ilegal sobre como tratar os refugiados, a Europa entrou num pacto de Fausto com a Turquia, país que fez vistas grossas ao ISIS e se posiciona claramente contra os princípios da democracia professados pela Europa. O Alto Comissariado das Nações Unidas e o Médicos sem Fronteiras retiraram-se da Grécia, declarando que o plano é ilegal.
Claro que isso não passa desapercebido no mundo árabe, e faz aumentar o abismo em relação ao Ocidente. Na retórica dos países da direita radical da Europa (Polônia, Hungria, Eslováquia) e dos partidos mais à direita, os refugiados converteram-se em portadores do terrorismo na Europa. A Europa sequer foi capaz de aplicar medidas óbvias de coordenação em matéria de terrorismo, devido ao zelo crescente dos governos. Não há nenhuma estratégia sobre essa questão, além da retórica, que é muito útil à estratégia do ISIS.

6) A direita radical e os partidos xenófobos são, portanto, aliados de fato do ISIS. É evidente que, sem uma estratégia de sensibilização e informação, a discriminação contra os árabes aumentará, e essa é exatamente a esperança do ISIS, que pede aos muçulmanos que vivem na Europa para decidir: ou se integram ao Ocidente e se convertem em apóstatas, ou auxiliam o grupo, atacando em todos os lugares.

7) Nenhum terrorista veio do mundo árabe. Todos os implicados até agora são europeus, nascidos e criados na Europa. Todos eram pequenos delinquentes e marginais. Nem todos eram muçulmanos praticantes, mas convertidos, doutrinados na prisão ou através das redes sociais. Eram, de fato, niilistas que encontraram no ISIS dignidade e a possibilidade de escapar de uma vida sem trabalho e sem futuro. A Europa destinou 6 bilhões de euros para impedir a entrada de refugiados, depois de aplicar mais de 7 bilhões em gastos militares no Oriente Médio. Se esse dinheiro tivesse sido investido nos guetos dos árabes que vivem na Bélgica, França e Grã Bretanha, provavelmente as condições para que o terrorismo se expandisse teriam sido drasticamente reduzidas.

8) É fato que, sem imigrantes, a Europa não terá viabilidade para competir em nível internacional e manter a estabilidade social. (Veja o link) A população ativa está em declínio desde 2010. A Alemanha necessita de 800 mil pessoas. Em 2060, haverá 50 milhões de pessoas a menos na Europa e o sistema previdenciário, com uma população muito mais idosa, vai entrar em colapso.

Atualmente, a expectativa de vida é de 80 anos para o homem e 85,7 para as mulheres. Em 2060 será de 91 para o homem e 94,3 para a mulher. A idade de 82% dos refugiados sírios é inferior a 34 anos, e um estudo do ministério do Interior da Áustria revelou que eles têm, em média, nível educacional superior ao do cidadão austríaco. Por isso, o cidadão europeu deve ver os imigrantes como um recurso e um apoio. Nenhuma campanha de sensibilização sobre este tema está em marcha, porque politicamente não seria bem vista.

9) A tendência é a contrária. Os partidos xenófobos cresceram em todas as últimas eleições e pedem a expulsão dos imigrantes, como Donald Trump está fazendo nos Estados Unidos. Isso, além de ser impossível, é também um erro político trágico. A animosidade contra os muçulmanos, sem nenhum esforço para compreender a complexa realidade, vai favorecer o terrorismo e radicalizar os imigrantes que vêm para a Europa trabalhar e viver com dignidade.

10) A conclusão final é que estamos caindo na armadilha de um choque de civilizações, em que defendemos uma Europa cristã contra um mundo muçulmano hostil. Este é o pior erro possível. Cai muito bem para a retórica do ISIS, já que qualquer choque requer polarização. O aumento do medo e da insegurança ajuda os partidos de direita radical e xenófobos a se apoderar da Europa.

A polarização nunca foi útil para a democracia e a tolerância. Um grupo de no máximo 50 mil militantes, num universo de 1,5 bilhões de muçulmanos, é capaz de mudar nossa vida, reduzir nossa privacidade e as liberdades individuais, e aumentar o militarismo e a vigilância.

Se não conseguirmos escapar da armadilha do choque de civilizações, a Europa vai mudar profundamente, porque o fenômeno do terrorismo permanecerá durante uma ou duas gerações. Foram necessários quase dois séculos para a Europa se desfazer das guerras de religião. Na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), numa população total de 79 milhões de pessoas, morreram oito milhões, em sua maioria civis.

Será que a história nos ajudará a enfrentar o presente?

(fonte: http://outraspalavras.net/capa/combate-ao-terror-rumo-a-um-fracasso-anunciado/)

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