sábado, 2 de abril de 2016

O Complexo de Dom Casmurro



Antônio de Paiva Moura

No livro de Machado de Assis, “Dom Casmurro”, Bento Santiago (Bentinho) se dispõe a narrar a história de sua vida. Trata-se de um homem aos 60 anos de idade. O espaço dedicado à infância é bastante limitado. Diz apenas que morava no interior e que foi para o Rio de Janeiro, aos 2 anos de idade, quando o pai foi eleito deputado. A sua biografia focaliza a adolescência, momento que passa a se interessar pelo relacionamento com a jovem Capitu, a vizinha que viria a ser o grande amor de sua vida. Capitu é uma garota bela, inteligente e possui um extraordinário poder de sedução, manifesto em seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, capazes de atrair como a ressaca do mar. 

Com a morte do pai, Bentinho vive sob a proteção da mãe, a viúva D. Glória, que sendo muito rica, mantém sob sua dependência um grupo de parentes: o irmão Cosme, a prima Justina e o agregado José Dias. É nessa casa de velhos viúvos que Bentinho cresce. Depois da perda do primeiro filho, D. Glória jurou que o segundo seria padre. O juramento transformou-se em angústia e prenúncio de separação do filho único. O namoro com Capitu reforça no menino a falta de vocação, mas ele acaba por obedecer ao desejo materno e entra para um seminário. 

No seminário, Bentinho e Escobar se tornam amigos. Juntos, os jovens conseguem convencer os pais a retirá-los do seminário. Com isso, Bentinho se forma em Direito e se casa com Capitu, enquanto a melhor amiga desta, Sancha, acaba por casar-se com Escobar. A felicidade de Bentinho se completa com o nascimento de Ezequiel, seu filho, que vem fazer companhia a Capituzinha, filha do casal amigo. 

Quando tudo corria bem, sem maiores acidentes, ocorreu um imprevisto que acabou mudando o rumo do grupo de amigos: Escobar morre afogado. Durante o velório, Bentinho percebe no comportamento da esposa marcas de um adultério que ele, até ali, não tinha suspeitado. A partir desse momento, outros indícios se juntam ao primeiro. O maior deles é a grande semelhança que Bentinho vê entre seu filho e o amigo morto. Obtida essa prova viva da traição, separa-se e envia Capitu e Ezequiel para a Europa. Dali até a velhice, Bentinho vive em estado de relativa reclusão, o que faz surgir seu apelido: Dom Casmurro, que quer dizer introspectivo. O narrador personagem é uma figura teimosa: insiste em defender seus pontos de vista, convicto que eles são verdadeiros. Defende a idéia de que foi traído, mesmo que não tenha nenhuma prova concreta.  Em Dom Casmurro, Machado de Assis toma a traição como ponto de partida para discutir temas mais amplos e permanentes, o que lhe confere a condição de obra atual. Ao mesmo tempo, parte dessa discussão ilumina seu próprio tempo, o que lhe confere uma marca histórica.

A palavra complexo indica que o fenômeno a ser estudado traz em si uma grande quantidade de fatores amalgamados, dificultando seu entendimento. Freud empregou esse termo na exposição do impulso ao amor incestuoso, exemplificando-o com os casos de Édipo e de Electra.  Na mitologia grega, o ciúme aparece na história da deusa Hera, que ao matar as amantes de Zeus, manifestava seu ciúme pelo medo de perder o poder. Outra manifestação de tal sentimento aparece na história de Medeia, que por ciúmes, matou o marido, a amante e involuntariamente, seus filhos.  Adultérios e atos de traição, na idade média foram muito frequentes. Giovanni Boccaccio, em “Decamerão”, conta muitas histórias de mulheres traindo o marido e as respectivas punições. A mais freqüente era a devolução da adúltera aos pais, porém, sem os dotes recebidos. 

Essas recorrências históricas servem para mostrar que o drama do sentimento de ciúmes é o mesmo desde os primórdios da civilização. O que muda são as formas de reação do homem diante da traição por parte da mulher. Bentinho, o narrador personagem vive no final do século 19, com perspectivas de entrada no século 20. Momentos de transformações sociais, com a burguesia agrária se acomodando nas grandes cidades; início de um processo de liberação da mulher; aumento de status do homem burguês formado em cursos superiores. Apesar de ser um homem bem atualizado, Bentinho se comporta como os personagens de Boccaccio. Uma simples e possivelmente falsa hipótese de traição, foi o suficiente para ele despachar Capitu para Portugal e passar o resto da vida ruminando a verdade e descartando a falsidade. 

            No dizer de João Paulo Cunha, Bentinho não sofria só pelo sentimento de traição de Capitu, mas porque não entendia que o mundo mudou. Os cidadãos brasileiros da mesma classe social de Bentinho sofrem o mal da ilusão que os leva à recusa de ver a situação do pais e do mundo de forma verdadeira. Preferem atribuir tudo à corrupção, ou a erros de governantes. Não entendem que a prática da corrupção, em busca de enriquecimento e de maiores lucros está na veia do capitalismo. Em busca de resultados políticos fazem acusações falsas de adversários e ocultam as verdadeiras de seus correligionários.

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