sábado, 18 de junho de 2016

EUA: o ódio que o FBI não enxerga

Estado vigia obsessivamente os muçulmanos. Mas faz vistas grossas a centenas de grupos que pregam ou praticam violência contra minorias. Por isso, Mateen, que matou 49, pôde agir com liberdade

Por Reginaldo Nasser

Dias após a tragédia em Orlando, continuam as investigações policiais na esperança de que possa surgir algum detalhe esclarecedor sobre os motivos que levaram Omar Mateen a cometer massacre na boate LGBT. Sabe-se que Mateen esteve sob vigilância do FBI, em 2013, por ter feito comentários “suspeitos”, após ser “ridicularizado” por sua origem muçulmana. De acordo com as autoridades do FBI, Mateen manifestou simpatia em relação a grupos terroristas, mas a suspeita foi descartada depois que o FBI concluiu que não representava uma ameaça, já que não havia nenhum laço concreto com grupos islâmicos.

Creio que essa ação do FBI é muito significativa. Colocou alguém na lista de suspeitos de ligação com o terrorismo, por ser um islâmico que se manifestou de “forma radical”, mas concluiu que não era ameaça por não ter relação com grupos terroristas islâmicos no exterior. Provavelmente o FBI nem registrou o caso de Mateen que, como milhares de pessoas, manifestam de alguma forma o ódio contra grupos LGBT, nem muito menos seu histórico de violência contra sua ex-mulher. Para o FBI, isso não se constituiu uma ameaça à sociedade!

Nos últimos anos, o governo dos EUA destinou milhões de dólares para programas de combate ao que considera “extremismo violento”, cujo objetivo é identificar e/ou impedir indivíduos que são propensos a cometer violência. Estes programas têm sido severamente criticados por especialistas, na medida em que enfatizam ideologias e crenças, e não incorporam outros indicadores como o comportamento em relação a parceiros íntimos e familiares (ver artigo do The Intercept Was Orlando shooters domestic violence history a missed warning sign?).

Pesquisa realizada pela organização Everytown for Gun Safety, em 2015, constatou que mais de 25% de todos os massacres ocorridos nos últimos seis anos, foram perpetrados por indivíduos com algum histórico de violência doméstica.

Essas questões obrigam-nos a olhar com mais atenção para o conceito de violência. Para o pensador norueguês Joan Galtung, a violência visível (física) é apenas a ponta do iceberg, pois esta intimamente relacionada a situações de violência estrutural e/ou justificadas pela violência cultural. A violência estrutural se refere àquelas situações em que se produz algum tipo de restrição na satisfação das necessidades humanas básicas (bem estar social e econômico, identidade ou liberdade) como resultado de processos de estratificação social. Ocorre sempre que há conflito entre dois ou mais grupos sociais (gênero, etnia, classe, nacionalidade) em que o acesso ou possibilidade de uso dos recursos resulta favoravelmente a alguma das partes em detrimentos dos demais. Já a violência cultural se expressa por meios simbólicos (religião, ideologia, linguagem, arte, ciência, mídia, educação, etc.), e tem como função legitimar a violência direta e/ou estrutural, e oferece justificativas para que os seres humanos, além de se destruírem mutuamente, ainda sejam recompensados por isso (racismo, sexismo, xenofobia etc).

Vejamos, por exemplo, como tem se manifestado a violência cultural nos EUA. A organização Southern Poverty Law Center (SPLC) monitora, desde 1981, o que considera como grupos de ódio nos EUA — isso é, aqueles que “… têm crenças ou práticas que atacam ou difamam um grupo de pessoas, devido às suas características. Suas atividades incluem marchas, comícios, discursos, reuniões, panfletagem ou publicação”. Ou seja, agem estritamente dentro da lei, pois exercem direitos protegidos pela primeira Emenda da Constituição dos EUA (“o Congresso não fará nenhuma lei a respeito do estabelecimento de uma religião, ou proibindo o livre exercício dela; ou cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo se reunir pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de injustiças”).

De acordo com pesquisa realizada pelo SPLC, em 2015, são 982 os grupos de ódio ativos nos EUA, não incluindo aqueles que estão apenas no ciberespaço. Trata-se de grupos extremamente diversificados como Ku Klux Klan, White Nationalist, Racist Skinhead, Christian Identity, Neo-Confederate, Black Separatist end General Hate. Para além de suas particularidades, todos esses grupos manifestam, de alguma forma, ideologias de ódio, incluindo as subcategorias anti-LGBT, anti-imigrantes, islamofobicos, negação do Holocausto e outros. Trata-se, sem duvida nenhuma, de um ambiente social com níveis exacerbados de violência cultural.

É provável que ainda sejam adicionadas novas informações sobre as possíveis motivações do massacre, mas um fato é incontestável e não precisa esperar pelos resultados de uma investigação completa: trata-se do maior massacre na história dos EUA que teve como alvo a comunidade LGBT.

Apesar disso, políticos do Partido Republicano, em sua grande maioria, têm se recusado a mencionar a comunidade LGBT pelo nome. Trata-se de um ensurdecedor silencio de cumplicidade com o ódio que viceja nessa sociedade e que conta com a proteção de uma constituição que é alardeada no mundo inteiro como a mais democrática do mundo. Se é isso então devemos concluir que há algo de podre no reino da democracia.

(fonte: http://www.outraspalavras.net/reginaldonasser/2016/06/16/eua-o-odio-que-o-fbi-nao-enxerga/)

Nenhum comentário:

Postar um comentário