quarta-feira, 18 de março de 2015

E, de repente, te descobri meu inimigo: revendo Concorrência desleal


MARCELO GRUMAN*

concorrencia
Outro dia, revi Concorrência desleal, comédia dramática italiana dirigida por Ettore Scola no ano de 2001. A história, que se passa no início do ano de 1938, às vésperas da visita de Adolf Hitler à capital italiana, é narrada por Pietro, filho de Umberto, proprietário de uma tradicional alfaiataria. Na mesma calçada, na loja contígua, o senhor Leone toca em frente seu pequeno armarinho. Pietro e Lele, filho do senhor Leone, são muito amigos. Têm talvez seus sete ou oito anos, trocam figurinhas, gostam dos mesmos personagens das histórias em quadrinhos, realizam pequenas sabotagens aos bondes que passam na rua instalando bombinhas nos trilhos, são cúmplices na observação secreta da bonita vendedora de perfumes. O filho mais velho de Umberto, Paolo, e a filha mais velha de Leone, Susana, estão apaixonados e trocam cartas de amor; ele estuda Arquitetura, ela freqüenta o conservatório onde aprende piano.
As relações entre as famílias, que já não eram lá muito boas, azedam por completo quando Leone resolve vender roupas prontas, portanto mais baratas que as feitas sob medida, e “rouba” parte da clientela da alfaiataria de Umberto. “Traiçoeiros” e agindo como uma “quadrilha”, Leone, sua mulher e seu pai estão sempre um passo à frente de Umberto, aproveitando-se de suas idéias (por exemplo, quando o alfaiate resolve fazer um festival de roupas de marinheiro, usando o bordão “todos ao mar!”), expandindo-as. Tudo tem um limite, pensa Umberto.
Quando seu cunhado desempregado compra um terno no armarinho para uma entrevista de emprego, o alfaiate perde as estribeiras. Vai ao encontre de Leone para devolver-lhe o terno e tomar de volta o dinheiro gasto com o concorrente. Depois de breve discussão, os dois começam a trocar insultos, saem para a rua e, sob os olhares de familiares e transeuntes, Umberto vomita a frase fatídica: “Uma vez judeu, sempre judeu”. Imediatamente, sente que não deveria ter dito o que disse e que o constrangimento ficou tão denso que poderia ser cortado com uma faca. O senhor Leone foi pego de surpresa, Pietro e Lele trocam olhares. Até este momento, a identidade judaica do senhor Leone e de seus familiares não havia aparecido na narração de Pietro.

A partir de então, o espectador é inserido de forma mais clara no cotidiano italiano pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial. Enquanto Pietro se diverte lendo as novas aventuras de seu herói em quadrinhos, Lele lê as manchetes do jornal, tratando de discussões acerca das novas leis raciais que passaram a vigorar no país neste ano de 1938. Num dos jornais pode-se ler o título “grande raça ariana, pequena raça judia”. Enquanto isso, o delegado responsável pela investigação do incidente envolvendo a devolução do terno do cunhado pergunta se Umberto teria alguma coisa a acrescentar além do desentendimento comercial, fruto da concorrência, especialmente à questão da sua “italianidade” em oposição à “estrangeirice” (apesar de ter nascido em solo italiano) do senhor Leone. Umberto não leva adiante o entrevero.

As más notícias para a família judia vêm num crescente, preparando o espectador para o final previsível. Entre inúmeros desfiles dos camisas negras fascistas, Paolo e Susana brigam porque Paolo não a defendeu quando seus amigos, numa mesa de bar, contaram piadas ofensivas aos judeus. Para Paolo, Susana é como outra mulher qualquer, querendo dizer com isso que sua identidade religiosa/étnica/racial pouco lhe importa. Susana não fica contente com a resposta, e responde que Paolo é como outro qualquer, ou seja, antissemita. Leone e amigos lêem que as leis raciais passariam a impedir que judeus exercessem determinadas profissões como jornalista, médico, advogado, tabelião, engenheiro, arquiteto, professor de escolas, institutos e universidades. A empregada doméstica deve ser mandada embora, porque famílias judias não podem empregar católicos/arianos. O rádio da família é confiscado. Lele não pode mais freqüentar a escola, bem como sua irmã, Susana, que é obrigada a abandonar o conservatório. Finalmente, a família judia deve sair de casa e seguir para um gueto nos arredores, onde já vive uma avó de Lele, escala antes de seu destino final, o extermínio.

Na época do lançamento do filme, Ettore Scola emitiu a seguinte nota:

“Viver na mesma cidade, na mesma rua, fazer o mesmo tipo de trabalho, pertencendo ao mesmo meio social, tendo o mesmo tipo de família – uma esposa, duas crianças, tias, tios, avós – e ainda não ser igual, não ter os mesmos direitos, não poder freqüentar as mesmas escolas nem exercer sua profissão ou abrir seu próprio negócio por sofrer intolerância e exclusão. Descobrir que você é considerado “diferente”, por nascimento ou devido à raça. Isto foi o que aconteceu no passado, com os judeus e os negros. Hoje, isto está acontecendo na Europa com os imigrantes e trabalhadores que vêm do outro lado da União Europeia”

Uma década e meia após o lançamento de Concorrência desleal, vivemos num mundo, na melhor das hipóteses, igual. A intolerância e a indiferença com o “outro” crescem a olhos vistos. No brilhante relato do jornalista norte-americano Philip Gourevitch, Gostaríamos de informá-lo que amanhã seremos mortos com nossas famílias, membros pertencentes às etnias tutsi e hutu, de Ruanda, antes de serem submetidos pelo império belga à velha tática do “dividir para conquistar”, estabeleciam relações de camaradagem, eram amigos, tomavam sua cervejinha, conversavam sobre futebol. Em questão de meses a afinidade transformou-se em estranhamento, do estranhamento veio a indiferença, último estágio para que o ódio permita a instalação de um regime genocida que matou, proporcionalmente (em quantidade e em tempo), mais gente do que o holocausto judeu da Segunda Guerra Mundial. Isto ocorreu em meados dos anos 1990.

Em Concorrência desleal descobre-se uma italianidade, ou falta dela, cinco décadas depois do nascimento, e que uma condecoração militar recebida por bravura na Primeira Guerra Mundial foi um engano. Até recentemente, na África do Sul, a polícia media a temperatura da cama onde, a partir de denúncia anônima ou não, um casal formado por branco (a) e negra (o) supostamente praticava o ato sexual. Se a temperatura estivesse acima do normal, confirmando a denúncia, sanções eram aplicadas aos transgressores da legislação racista do Apartheid.

Hoje, a extrema-direita se alastra por diversos países europeus pregando a intolerância e a expatriação de “indesejados”, apesar de cidadãos. Vizinhos de longa descobrem-se incompatíveis porque de religiões diferentes, apesar de compartilharem inúmeras outras formas de identificação. O próximo transforma-se em distante, mais do que isso, uma ameaça à integridade simbólica daquilo que os fundamentalistas chamam de “nação”. As fobias nunca estiveram tão em voga, de tudo e de todos. O multiculturalismo está perdendo a guerra. Até por aqui as coisas não andam lá tão tranqüilas. Amizades morreram ou foram gravemente feridas durante as últimas eleições presidenciais, quando petistas e peessedebistas se entrincheiraram e de suas trincheiras nunca mais saíram.

No documentário Promessas de um novo mundo, a esperança de uma resolução para o conflito israelense-palestino reside nos olhos dos recém-nascidos, filhos de judeus ultra-ortodoxos e de palestinos que vivem na mesma região, olhos ainda puros que vêem o mundo sem preconceito, intolerância, rancor, desprezo pelo “outro”, pelo “diferente”. Em Concorrência desleal, a esperança é resumida na frase de Pietro, enquanto observa o caminhão levando embora seu amigo Lele junto com sua família para fora da rua, “higienizando-a”. Diz ele que “Não há o que fazer. Os que tomam óleo de fígado de bacalhau juntos ficam amigos por toda a vida”.

O filme de Scola é mais atual do que nunca, infelizmente.
 (fonte: https://espacoacademico.wordpress.com/2015/03/18/e-de-repente-te-descobri-meu-inimigo-revendo-concorrencia-desleal/)

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