Ladislau Dowbor
O homo sapiens todos conhecemos. Inclusive a maior parte da teoria
econômica e das teorias das transformações sociais se baseia numa
compreensão otimista de que o homem absorve conhecimentos, confronta-os
com os seus objetivos racionalmente entendidos, e procede de acordo.
Quando erra, analisa os erros e corrige a sua visão para não repeti-los.
Naturalmente,
é agradável pensarmos que somos, conforme aprendi na escola, animais
racionais, racionalidade que nos separaria confortavelmente dos animais.
As minhas dúvidas aumentam proporcionalmente à minha idade, o que
significa que são elevadas. Pensar que somos mais do que somos é uma
atitude muito difundida. A bíblia já abre com o tom adequado: Deus nos
criou à sua imagem e semelhança, o que implica por virtude dos espelhos
que somos semelhantes nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta
pretensão, e o fato de passar tão desapercebida e natural, já mostra a
que ponto a nossa racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável,
mas não necessariamente ao que é verdadeiro.
Pensar na dimensão irracional da nossa inteligência, ou nas raízes
interessadas e ideologicamente deformadas do que nos parece
racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Fazemos uma construção
racional em cima de fundamentos profundamente enterrados na confusão de
paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios. Quanto maior o
preconceito – no sentido literal, raiz emocional que assume a postura
antes do entendimento - maior parece ser a busca do sentimento de
superioridade moral.
Devemos lembrar como foram denunciados e
massacrados ou ridicularizados os que lutaram pelo fim da escravidão,
pelo fim da discriminação racial, pelos direitos de organização dos
trabalhadores, pelo voto universal, pelos direitos das mulheres? A
imensa batalha que foi chegar ao intelecto dos dominantes que um povo
colonizar outro não dá certo? Hoje é a mesma luta pela redução das
desigualdades, pelo fim da destruição do planeta, pela democratização de
uma sociedade asfixiada por interesses econômicos. Aqui precisamos de
muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e indignações sim, mas
apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e visando o interesse
maior de todos, e não no interesse particular de defesa dos privilégios.
Aqui
realmente é preciso de muita ignorância, ou seja, desconhecimento
(voluntário ou não), para não se dar conta dos desafios reais. O
aquecimento global é uma ameaça real, mas a direita tende a negar, como
se o termômetro e os gazes de efeito de estufa fossem de esquerda. O
desmatamento generalizado do planeta está levando a perdas de solo
fértil em grande escala, quando iremos precisar de mais área de plantio.
A vida nos mares está sendo esgotada pela sobrepesca e em 40 anos,
segundo o WWF, perdemos 52% da vida vertebrada no planeta. É um desastre
planetário espantoso, mas não aparece na mídia comercial. Os dados
sobre a inviabilização ambiental do planeta são hoje amplamente
comprovados. Há controvérsias, nos dizem. Mas é questão de opinião ou de
conhecimento dos dados?
No plano social é mais impressionante ainda: até o Fórum Econômico em
Davos escuta e divulga as pesquisas da Oxfam, do Banco Mundial e das
Nações Unidas, dos inúmeros institutos de pesquisa estatística em todos
os países sobre a desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os
dados da desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias
são donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na
base da pirâmide social – gerando tensões insustentáveis. Mas em Wall
Street enchem a boca e declaram “greed is good”. Sobre esta desigualdade
de patrimônio uma das principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas
razões para entender tudo de fortunas familiares. Nem os dados da
própria direita parecem convencer a direita, se não confirmam os seus
preconceitos.
Vamos tampar os olhos e fazer de conta que
acreditamos que é possível manter a paz política e social num planeta
onde 1,3 bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não têm acesso
a fontes decentes de água, e 850 milhões passam fome? Tem sentido
acreditar no bom pobre¸ que se resigna e aceita, quando hoje até no
último degrau da pobreza há uma consciência do direito a ter uma escola
decente para o filho, saúde básica para a família? Aqui já não são
apenas os olhos e os ouvidos que estão tapados, e sim a própria
inteligência. O homo ignorans raciocina com o fígado.
E porque
toda esta riqueza acumulada no topo não serve para as reconversões
tecnológicas que nos permitam salvar o planeta, e para financiar as
políticas sociais e inclusão produtiva capaz de reduzir as
desigualdades? Basicamente porque está situada em paraísos fiscais,
aplicada em sistemas de especulação financeira, sequer orientada para
investimentos produtivos tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80%
das atividades corporativas do planeta são essencialmente grupos
financeiros. Fonte? O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica.
São recursos que não só se aplicam em especulação financeira em vez de
financiar investimentos produtivos, como migram para paraísos fiscais
onde não pagam impostos. O Economist estima que sejam 20 trilhões de
dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.
O Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, da
ordem de 25% do PIB. O HSBC que o diga. Mas no Brasil a grande vitória é
a eliminação da CPMF que cobrava ridículos 0,38% sobre movimentações
financeiras. No Brasil pessoas inteligentes e informadas conseguem
ignorar o gigantesco desvio de recursos através dos grandes
intermediários financeiros, e culpam o eterno bode expiatório que é o
governo. Em particular quando comete o pecado de melhorar a condição dos
pobres. Ainda bem que temos a corrupção para canalizar a atenção e os
ódios. O uso produtivo dos recursos não seria mais inteligente?
Não
há nenhuma confusão sobre as dimensões propositivas: se estamos
destruindo o planeta em proveito de uma minoria que pouco produz e muito
especula, trata-se de tributar a riqueza improdutiva para financiar as
políticas tecnológicas, ambientais e sociais indispensáveis aos
equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes apontamos rumos
básicos no documento Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, não
são ideias que faltam: falta muita gente que tampa o sol com a peneira
dos seus interesses se dar conta dos desafios reais que enfrentamos.
Aliás, o norte é bem simples: toda política que reduz as desigualdades,
protege o meio ambiente, e tributa capitais improdutivos contribui não
para salvar um governo, mas para nos salvar a todos. E um país do
tamanho do Brasil tem como trunfo fundamental, nesta época de
turbulências planetárias, a possibilidade de ampliar a base econômica
interna através da inclusão produtiva.
Confesso que ando
preocupado. Parece que quanto maior a bobagem declarada, maior o
sentimento de superioridade moral. E o ódio, esta eterna ferramenta dos
preconceituosos, é um sentimento agradável quando se consegue encobrir o
interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra permanente entre o
frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans, a olhar pelo
mundo afora, e pelos gritos histéricos de extremistas por toda parte –
sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas
justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os
outros. Pobre Deus, nosso semelhante.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Homo-ignorans/7/33141)
É sempre bom ler escritos de Dowbor. Sua reflexão sobre o momento histórico no mundo tem similitude com a atual situação do Brasil. O ódio e as fantasias se colocando acima da razão. Faz lembrar Sérgio Buarque de Holanda. o home cordial não é uma pessoa gentil, mas aquele que age movido pela emoção no lugar da razão, pondo de lado a ética e a civilidade.
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