terça-feira, 26 de maio de 2015

Democracia e humanismo



Antônio de Paiva Moura
           
          Como todos os regimes políticos, as democracias são mortais. As democracias representativas consistem em um conjunto de instituições políticas, jurídicas, econômicas e culturais. Segundo Keucheyan (2015) há um princípio que parece característico das democracias representativas: o sufrágio universal, isto é, o direito de qualquer pessoa adulta escolher seus representantes ou pronunciar-se em um plebiscito. Para que um cidadão possa exercer esse direito é necessário que ele tenha plena liberdade de consciência, de expressão, de reunião e de organização. 

            O direito ao voto teve uma longa caminhada histórica desde seu surgimento na Antiguidade clássica até nossos dias. Sempre que foi conquistado ou concedido, foi com a condição de não redundar em perigo ou ameaça às classes dominantes, o establishment. Basta lembrar que na cidadania democrática de Atenas antiga abrangia somente homens, filhos de pais e mães atenienses, livres e maiores de 21 anos. Escravos e estrangeiros eram excluídos da participação política. Na Revolução Francesa, a Assembléia Legislativa foi eleita em 1791 com um sufrágio censitário de dois graus: voto masculino e eleitor só com renda fixa. A resistência contra o voto feminino era tão forte que Olimpe de Gauges (1748-1793) foi guilhotinada porque reivindicava igualdade de direitos com os homens. O patriarcalismo impedia que as mulheres tivessem rendas, exatamente para que elas não tivessem nenhum poder ou direito. O sufrágio universal só foi adotado nos países ocidentais após a segunda guerra mundial. Mesmo assim, sofreu restrições em sua forma e retirada de poder dos eleitos. Muitas vezes, quando as classes trabalhadoras assumem o poder executivo, adota-se o parlamentarismo como forma de controle político. O regime militar no Brasil não extinguiu o voto universal, mas diminuiu o poder dos eleitos. Havia impedimento de candidaturas por discriminação ideológica e cassação de mandatos de políticos contrários ao regime. O direito a voto universal não foi adquirido por dádiva das camadas superiores da sociedade. Foi a pressão das classes trabalhadoras e segmentos subalternos da sociedade que o conquistou. A ideologia ou estereótipo da resistência das classes abastadas, chamadas elites, contra o voto universal e contra todas as formas de pressão democrática, é a de que “só os ricos são capazes de governar pelo interesse geral”. 

         O voto universal não é o único instrumento de exercício da democracia. A democracia é, também, um fenômeno cultural. Essa cultura se manifesta na educação, no modo de viver em sociedade. A necessidade e o espírito de luta são os motores que movem os indivíduos a se engajarem em grupos de pressão. O neoliberalismo tem sido uma força no sentido de impedir as conquistas sociais e democráticas. Muitas conquistas sociais do século vinte começaram a ruir. 

         A democracia representativa, por si só, não proporciona liberdade pessoal e política, sem que as instituições da sociedade civil estejam presentes. As três principais instituições brasileiras, Executivo, Legislativo e Judiciário são operadas por segmentos que impedem conquistas sociais e o aperfeiçoamento da democracia. No Executivo, o partido que vence as eleições tem que dividir o poder com outros que defendem não o bem geral, mas seus próprios interesses e suas facções. No Legislativo são formados grupos de classes como bancada ruralista, bancada evangélica, setor industrial e outros tantos. Por meio de conchavos, os grandes grupos controlam o sistema político e dele se apropriam para submetê-lo a seus interesses privados. No Judiciário, os magistrados saem das classes privilegiadas. É visível a tendência da justiça em proteger os mais ricos e penalizar somente os mais pobres, embora dentro da legalidade. 

   O naturalista alemão, Hermann Burmeister, que esteve no Brasil em 1852, observou que o estudo da estratificação social da província de Minas devia começar pela cor da pele, visto que a posição de cada um e seu nível de vida dependia grandemente desta circunstância. Os proprietários de terra e minas eram na quase totalidade, brancos. Burmeister entendia que a legislação era muito refinada, mas que a sociedade não se ajustava ao texto da lei, mantendo um comportamento subcultural diante dela. O poder judiciário merecia pouca confiança da população, de vez que todos sabiam que boas relações pessoais e dinheiro conseguiam vencer mesmo os maiores obstáculos. Tal lacuna não se devia tanto ao funcionalismo e nem aos jurados que não recebiam vencimentos. O hábito inveterado das decisões injustas fez com que ninguém se preocupasse mais com o direito. Desta forma, o mais rico ganhava do mais pobre; o branco do homem de cor e, no caso de processo entre brancos, vencia o que tivesse mais prestígio ou posição social, ou mais riquezas. Todos os três poderes valorizavam as pessoas mais ricas, cujas, fortunas provinham, na maioria dos casos, de fraudes.  Em Lagoa Santa, MG, Burmeister presenciou o seguinte acontecimento: Por uma das janelas da cadeia, viu um grupo de pessoas trajadas, sentadas atrás da grade, entretidas em animada conversa e bebendo vinho com visível satisfação. Ao indagar do que se tratava, informaram que certo cidadão muito rico, que já tinha várias contas a ajustar, fora finalmente preso como suspeita de um assassinato. Seus vizinhos tinham ido então visitá-lo para manifestar seu pesar, e o preso banqueteava-os na própria cadeia. Embora ninguém duvidasse de sua culpa, todos estavam certos de sua absolvição e receavam sua vingança. Por isso, lá foram visitá-lo, dando assim prova de sua opinião, considerando-o inocente.  

O conceito clássico de democracia, “governo do povo para o povo” é utópico, pois, na verdade, os privilégios existentes na sociedade não permitem que as decisões políticas sejam exercidas pelo povo.  Grande parte da sociedade brasileira não tem força para defender seus direitos. Os projetos de reformas políticas em tramitação no Congresso, seguindo o interesse das classes ricas e médias, podem sofrer um retrocesso do ponto de vista humanista. Uma involução democrática.

Referências:
BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil, através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. [1853] Tradução de Manoel Salvaterra. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.

KEUCHEYAN, Razmig. Democracias perecíveis. Le Monde Diplomatique, Brasil. São Paulo, n. 94, mai. 2015.

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