Antônio de Paiva Moura
Como
todos os regimes políticos, as democracias são mortais. As democracias
representativas consistem em um conjunto de instituições políticas, jurídicas,
econômicas e culturais. Segundo Keucheyan (2015) há um princípio que parece
característico das democracias representativas: o sufrágio universal, isto é, o
direito de qualquer pessoa adulta escolher seus representantes ou pronunciar-se
em um plebiscito. Para que um cidadão possa exercer esse direito é necessário
que ele tenha plena liberdade de consciência, de expressão, de reunião e de
organização.
O direito ao voto teve uma longa
caminhada histórica desde seu surgimento na Antiguidade clássica até nossos
dias. Sempre que foi conquistado ou concedido, foi com a condição de não
redundar em perigo ou ameaça às classes dominantes, o establishment. Basta lembrar que na cidadania democrática de Atenas
antiga abrangia somente homens, filhos de pais e mães atenienses, livres e
maiores de 21 anos. Escravos e estrangeiros eram excluídos da participação
política. Na Revolução Francesa, a Assembléia Legislativa foi eleita em 1791
com um sufrágio censitário de dois graus: voto masculino e eleitor só com renda
fixa. A resistência contra o voto feminino era tão forte que Olimpe de Gauges
(1748-1793) foi guilhotinada porque reivindicava igualdade de direitos com os
homens. O patriarcalismo impedia que as mulheres tivessem rendas, exatamente
para que elas não tivessem nenhum poder ou direito. O sufrágio universal só foi
adotado nos países ocidentais após a segunda guerra mundial. Mesmo assim,
sofreu restrições em sua forma e retirada de poder dos eleitos. Muitas vezes,
quando as classes trabalhadoras assumem o poder executivo, adota-se o
parlamentarismo como forma de controle político. O regime militar no Brasil não
extinguiu o voto universal, mas diminuiu o poder dos eleitos. Havia impedimento
de candidaturas por discriminação ideológica e cassação de mandatos de
políticos contrários ao regime. O direito a voto universal não foi adquirido
por dádiva das camadas superiores da sociedade. Foi a pressão das classes
trabalhadoras e segmentos subalternos da sociedade que o conquistou. A
ideologia ou estereótipo da resistência das classes abastadas, chamadas elites,
contra o voto universal e contra todas as formas de pressão democrática, é a de
que “só os ricos são capazes de governar pelo interesse geral”.
O voto universal não é o único
instrumento de exercício da democracia. A democracia é, também, um fenômeno
cultural. Essa cultura se manifesta na educação, no modo de viver em sociedade.
A necessidade e o espírito de luta são os motores que movem os indivíduos a se
engajarem em grupos de pressão. O neoliberalismo tem sido uma força no sentido
de impedir as conquistas sociais e democráticas. Muitas conquistas sociais do
século vinte começaram a ruir.
A democracia representativa, por si
só, não proporciona liberdade pessoal e política, sem que as instituições da
sociedade civil estejam presentes. As três principais instituições brasileiras,
Executivo, Legislativo e Judiciário são operadas por segmentos que impedem
conquistas sociais e o aperfeiçoamento da democracia. No Executivo, o partido
que vence as eleições tem que dividir o poder com outros que defendem não o bem
geral, mas seus próprios interesses e suas facções. No Legislativo são formados
grupos de classes como bancada ruralista, bancada evangélica, setor industrial
e outros tantos. Por meio de conchavos, os grandes grupos controlam o sistema
político e dele se apropriam para submetê-lo a seus interesses privados. No
Judiciário, os magistrados saem das classes privilegiadas. É visível a
tendência da justiça em proteger os mais ricos e penalizar somente os mais
pobres, embora dentro da legalidade.
O naturalista alemão, Hermann Burmeister,
que esteve no Brasil em 1852, observou que o estudo da estratificação social da
província de Minas devia começar pela cor da pele, visto que a posição de cada um
e seu nível de vida dependia grandemente desta circunstância. Os proprietários
de terra e minas eram na quase totalidade, brancos. Burmeister entendia que a
legislação era muito refinada, mas que a sociedade não se ajustava ao texto da
lei, mantendo um comportamento subcultural diante dela. O poder judiciário
merecia pouca confiança da população, de vez que todos sabiam que boas relações
pessoais e dinheiro conseguiam vencer mesmo os maiores obstáculos. Tal lacuna
não se devia tanto ao funcionalismo e nem aos jurados que não recebiam
vencimentos. O hábito inveterado das decisões injustas fez com que ninguém se
preocupasse mais com o direito. Desta forma, o mais rico ganhava do mais pobre;
o branco do homem de cor e, no caso de processo entre brancos, vencia o que
tivesse mais prestígio ou posição social, ou mais riquezas. Todos os três
poderes valorizavam as pessoas mais ricas, cujas, fortunas provinham, na
maioria dos casos, de fraudes. Em Lagoa
Santa, MG, Burmeister presenciou o seguinte acontecimento: Por uma das janelas
da cadeia, viu um grupo de pessoas trajadas, sentadas atrás da grade,
entretidas em animada conversa e bebendo vinho com visível satisfação. Ao
indagar do que se tratava, informaram que certo cidadão muito rico, que já
tinha várias contas a ajustar, fora finalmente preso como suspeita de um
assassinato. Seus vizinhos tinham ido então visitá-lo para manifestar seu
pesar, e o preso banqueteava-os na própria cadeia. Embora ninguém duvidasse de
sua culpa, todos estavam certos de sua absolvição e receavam sua vingança. Por
isso, lá foram visitá-lo, dando assim prova de sua opinião, considerando-o
inocente.
O conceito clássico de democracia, “governo do povo para o povo” é
utópico, pois, na verdade, os privilégios existentes na sociedade não permitem
que as decisões políticas sejam exercidas pelo povo. Grande parte da sociedade brasileira não tem
força para defender seus direitos. Os projetos de reformas políticas em
tramitação no Congresso, seguindo o interesse das classes ricas e médias, podem
sofrer um retrocesso do ponto de vista humanista. Uma involução democrática.
Referências:
BURMEISTER,
Hermann. Viagem ao Brasil, através das
províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. [1853] Tradução de Manoel
Salvaterra. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980.
KEUCHEYAN,
Razmig. Democracias perecíveis. Le
Monde Diplomatique, Brasil. São Paulo, n. 94, mai. 2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário