por Luis Nassif
A cartelização dos grupos de mídia foi o passo inicial do pacto de
2005, que teve como grande mentor o finado Roberto Civita, da Editora
Abril, baseado no modelo Rupert Murdoch – o australiano que se mudou
para os Estados Unidos e definiu uma estratégia pesada de sobrevivência,
que acabou servindo de modelo para grupos de mídia inescrupulosos.
A lógica do pacto era simples e tosca como o jornalismo de Murdoch.
Com a Internet, vinham pela frente mudanças radicais trazendo o maior
desafio da história para os grupos de mídia, mais do que o advento do
rádio e da televisão, porque muito mais difícil de enquadrá-la em
regulamentação – como foi o caso da Lei das Concessões, que restringiu a
competição e entregou o filé mignon aos grupos já estabelecidos.
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A estratégia murdochiana consistia em criar um clima de guerra,
instaurar um macarthismo feroz debaixo do qual caberiam todas as jogadas
comerciais necessárias para assegurar a sobrevivência dos grupos de
mídia em novos mercados.
Dentro dessa estratégia, em 2007 explodiu uma guerra hoje em dia
pouco lembrada, em torno dos livros didáticos e dos cursos apostilados.
Considerou-se que o mercado de livros didáticos poderia ser uma das
novas frentes dos grupos de mídia, seguindo a picada aberta pelo grupo
espanhol Santillana, controlador do jornal El Pais.
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A Abril entrou no mercado de livros didáticos e cursos apostilados
através de uma nova divisão, na qual incorporou as editoras Ática e
Scipione, que havia adquirido em sociedade com o grupo francês VIvendi; e
a Globo tentou uma sociedade com a UNO, braço do Santillana.
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Recorreu-se ao macarthismo para afastar competidores.
No caso da Veja, a uma parceria com um site de
direita, criado para denunciar infiltração comunista no ensino. Com
base no site, a revista publicou uma reportagem sensacionalista
denunciando um competidor no mercado de cursos apostilados. Era matéria
falsa, baseada em informação desmentida pelo próprio acusado, mas que
não foi respeitada na reportagem publicada.
Coube à blogosfera desarmar a armação, denunciando a informação falsa
e divulgando trechos de livros de história da Ática e da Scipione com
as mesmas análises condenadas no material concorrente.
Desmascarada, a revista acabou publicando um “Erramos”, episódio raro em sua história.
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A segunda frente foi conduzida por Ali Kamel, já elevado a diretor da Globo.
Em 18 de setembro de 2007 publicou coluna no jornal O Globo,
prontamente reproduzida no Estadão, denunciando o conteúdo subversivo de
um campeão de vendas, o coleção “Nova História Crítica”, de uma editora
nacional. As denúncias foram repercutidas nos demais veículos da Globo,
da revista Época ao Jornal Nacional.
Kamel denunciava o livro por suposta apologia a Mao Tse-tung selecionando a parte que enaltecia Mao:
"Foi um grande estadista e comandante militar. Escreveu livros
sobre política, filosofia e economia. Praticou esportes até a velhice.
Amou inúmeras mulheres e por elas foi correspondido. Para muitos
chineses, Mao é ainda um grande herói. Mas para os chineses
anticomunistas, não passou de um ditador."
E sonegando a parte que o criticava:
“Como governante, agiu de forma parecida com Stálin,
perseguindo os opositores e utilizando recursos de propaganda para criar
a imagem oficial de que era infalível.”
Sobre a revolução cultural chinesa, Kamel mencionava o trecho:
“Foi uma experiência socialista muito original. As novas
propostas eram discutidas animadamente. Grandes cartazes murais, os
dazibaos, abriam espaço para o povo manifestar seus pensamentos e suas
críticas”.
E escondia a crítica:
''O Grande Salto para a Frente tinha fracassado. O resultado foi
uma terrível epidemia de fome que dizimou milhares de pessoas. (...) Mao
(...) agiu de forma parecida com Stálin, perseguindo os opositores e
utilizando recursos de propaganda para criar a imagem oficial de que era
infalível.'' (p. 191) ''Ouvir uma fita com rock ocidental podia levar
alguém a freqüentar um campo de reeducação política. (...) Nas
universidades, as vagas eram reservadas para os que demonstravam maior
desempenho nas lutas políticas. (...) Antigos dirigentes eram arrancados
do poder e humilhados por multidões de adolescentes que consideravam o
fato de a pessoa ter 60 ou 70 anos ser suficiente para ela não ter nada a
acrescentar ao país...''
Sobre a revolução russa, o mesmo procedimento:
"É claro que a população soviética não estava passando fome. O
desenvolvimento econômico e a boa distribuição de renda garantiam o lar e
o jantar para cada cidadão. Não existia inflação nem desemprego. Todo
ensino era gratuito e muitos filhos de operários e camponeses conseguiam
cursar as melhores faculdades. (...) Medicina gratuita, aluguel que
custava o preço de três maços de cigarro, grandes cidades sem crianças
abandonadas nem favelas...
E escondia as críticas:
''A URSS era uma ditadura. O Partido Comunista tomava todas as
decisões importantes. As eleições eram apenas uma encenação (...). Quem
criticasse o governo ia para a prisão. (...) Em vez da eficácia
econômica havia mesmo era uma administração confusa e lenta. (...)
Milhares e milhares de indivíduos foram enviados a campos de trabalho
forçado na Sibéria, os terríveis Gulags. Muita gente foi torturada até a
morte pelos guardas stalinistas...''.
No dia seguinte ao artigo de Kamel, o diário El Pais (dono da
Santillana), publicou artigo repercutindo internacionalmente a denúncia e
afirmando que “el libro de texto ensalza el comunismo y la revolución
cultural china”.
No mesmo dia, o ex-Ministro Paulo Renato de Souza (em cuja gestão o
livro passou a integrar as obras do MEC) publicou no site do PSDB a
informação de que entraria no dia seguinte com representação na
Procuradoria Geral da República para retirar a Nova Historia Crítica do
mercado.
No seu site pessoal, a informação de que sua consultoria tinha entre seus clientes a Santillana.
***
Conseguiram matar um campeão de vendas. Mas o contraponto da
blogosfera produziu tal desgaste que a estratégia acabou abandonada,
para alívio das editoras e dos autores concorrentes.
Restou o esperneio, o uso do poder da Globo para processar jornalistas que ousaram investir contra a estratégia traçada.
(fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/ali-kamel-e-a-guerra-dos-livros-did%C3%A1ticos)
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