J. Carlos de Assis*
Leonardo Boff publicou um texto magnífico, sob o ponto de vista moral, a
propósito do atentado contra Charlie Hebdo: Je ne suis pas Charlie.
Gostaria de dar uma modesta contribuição à mesma discussão sob o ponto
de vista da ciência política com base num ensaio também magnífico de
Norberto Bobbio, “Kant e as duas liberdades”. Isso porque há uma
confusão filosófica em torno de valores civilizatórios que estão sendo
defendidos pela quase unanimidade de intelectuais e políticos ocidentais
nesse dramático episódio. E gostaria de dar as razões para acompanhar
Boff e dizer que também eu não sou Charlie.
Lembra Bobbio que os
grandes filósofos políticos do alvorecer da idade moderna, de Kant,
Locke, Rousseau a Hobbes, se colocaram numa posição ambígua em relação
ao conceito de liberdade como um bem político. Sem serem definidas, duas
correntes se estabeleceram: aqueles que consideravam a liberdade como
não limite, e os que consideravam a liberdade como prerrogativa de
estabelecer os próprios limites. Os primeiros justificaram sobretudo o
liberalismo econômico, enquanto os segundos justificaram a democracia
política. Em qual dessas categorias se enquadravam os humoristas do
Charlie, e quais as consequências disso?
Note-se que não há
nenhum sistema político no mundo onde um desses princípios vigore de
forma absoluta. Há, sim, uma interação entre ambos. Mesmo na mais
liberal das nações, os Estados Unidos, o equilíbrio ora pende para o
lado liberal-republicano (como agora, a partir de Reagan), ora pende
para o lado democrático, como anteriormente com Roosevelt, Kennedy e
Johnson. Isso é dialética política viva, com aspectos do princípio
liberal sendo preservados no aspecto democrático dominante, ou com os
aspectos democráticos sendo preservados no aspecto liberal-republicano
dominante.
Se os chargistas, e em sentido mais amplo todos os
jornalistas acham que tem o direito a uma liberdade de imprensa sem
limites, eles estão extrapolando os conceitos do mais liberal de todos
os filósofos, Locke, inspirador do liberalismo econômico, pregador da
tolerância e defensor intransigente da propriedade privada, desde que se
respeite o direito do outro. Por outro lado, não se pode dizer que os
chargistas defendiam a democracia. Ou acaso a democracia não prima
justamente por garantir os direitos das minorias, entre os quais o de
proteção contra a má fé e o achincalhe dos seus símbolos culturais e
religiosos?
Evidentemente que nada justifica numa nação
civilizada o massacre ocorrido na França. Entretanto, quando não se tem
limites, caímos numa situação hobbesiana na qual o homem se torna lobo
do homem. Assim, se não quisermos viver permanentemente nos agredindo
mutuamente, como em estado selvagem, temos que aceitar, através do
regulador comum, o Estado, o estabelecimento de regras de convivência
que interessam a todos, indistintamente. Por isso que as constituições
protegem direitos individuais e de minorias, independentemente da
alternância de governos e de partidos políticos no poder.
A
ruptura do pacto de proteção a minorias coloca sérias consequências,
desde a instabilidade política a, no limite, o terrorismo. O garantidor
em última instância do equilíbrio social é o sistema judicial. No caso
de Charlie, o sistema judicial francês falhou redondamente ao não
acolher ações judiciais formais de comunidades muçulmanas contra charges
que consideravam ofensivas a seu principal profeta. Creio que este erro
custou a vida aos chargistas pois apontou um caminho de glória
individual aos assassinos que viram em seu ato uma forma de “vingar” o
Profeta, mesmo que isso significasse suicídio.
Vi várias vezes
na televisão o cartunista Ziraldo destacar enfaticamente a coragem dos
chargistas. Não creio que isso tenha sido exatamente coragem. Foi uma
temeridade, por exemplo, republicar as charges de um jornal dinamarquês
que havia sido ameaçado por fundamentalistas islâmicos por publicar
charges consideradas ofensivas ao Islã. Note-se que, quando se trata de
liberdade sem limites, ações individuais suscitam ações individuais
contrárias, sobretudo quando não há uma autoridade superior que
reconcilie ou estabeleça compensações para a parte ofendida, dentro de
critérios civilizados.
Outro aspecto a refletir é entronização
da liberdade de imprensa como sendo um direito absoluto numa sociedade
democrática. Isso funciona de alguma forma nos Estados Unidos porque lá o
sistema judicial liberal costuma proteger o indivíduo dos excessos de
injúria, calúnia e difamação da mídia, na mesma medida em que protege a
liberdade de imprensa. Não se trata, como também mencionou Boff, de
introduzir censura. Trata-se de fazer funcionar o sistema judicial sem
medo, o que só acontece em alguns casos raros no Brasil. Como regra, a
Justiça brasileira segue a imprensa e é tão manipulada por ela quanto
qualquer cidadão. Enfim, que o trágico episódio de Charlie nos faça
pensar sobre o significado para todos nós do princípio da liberdade,
equilibrando liberalismo e democracia.
*Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.
(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Entre-a-liberdade-sem-limites-e-a-liberdade-de-estabelecer-limites/4/32609)
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