quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Alcorão: entre desconhecimento e fantasia

A islamofobia exprime a repulsa à religião muçulmana e aos muçulmanos em geral e se baseia num profundo desconhecimento sobre o Alcorão.

por Leneide Duarte-Plon

Paris - “O Islã é compatível com a democracia?”

Formulada outras vezes com “République” no lugar de democracia, essa é uma indagação recorrente na França.  A primavera árabe e outros acontecimentos históricos do passado recente, além de atentados anteriores em solo francês, relançam de vez em quando o debate da possibilidade de construção de sociedades verdadeiramente democráticas em países de tradição e cultura muçulmanas.

Depois do ataque terrorista de janeiro que fez 17 vítimas em três dias em Paris, multiplicaram-se artigos, debates, entrevistas, documentários em torno da religião muçulmana, do Alcorão, dos muçulmanos franceses ou dos franceses de confissão (ou de cultura) muçulmana, como preferem alguns. Sutilezas semânticas para mostrar que são cidadãos republicanos antes de declararem um pertencimento a uma determinada cultura ou religião. O fato de serem muçulmanos não deve fazer desses cidadãos suspeitos a priori, como parece acreditar Marine Le Pen e os extremistas do Front National.

Para atender a leitores ávidos, as livrarias francesas foram invadidas por novas edições do Alcorão, que se chamou Alcoran em francês até o século XVIII, quando passou a ser traduzido como Le Coran. Escrito há quase três séculos, Le traité sur la tolérance, do anti-clerical Voltaire, publicado em 1763, foi outro livro que voltou à lista dos mais vendidos.

Após a tragédia, o Alcorão, pouco conhecido até mesmo dos que se dizem muçulmanos, polarizou os debates. Os islamólogos ocupavam as páginas dos jornais para explicar, decifrar, comentar o livro sagrado de 1 bilhão e 600 mil seres humanos espalhados por diversos continentes. Por que as pessoas matam em nome desse livro? Quem são esses fundamentalistas que fazem uma leitura literal de alguns trechos do Alcorão que, segundo eles, os autoriza a matar para defender Allah ou o profeta?
Berço do Iluminismo, país mais laico da Europa, a França é um Estado que respeita todos os cultos mas não reconhece nenhum deles. A lei de 1905 separou a Igreja do Estado e estabeleceu um laicismo ou laicidade que se tornou quase uma nova religião. Em nome desse laicismo foram editadas leis para garantir a neutralidade das repartições e escolas públicas, banindo desse espaço toda pessoa que porte qualquer sinal ostensivo de uma religião como a cruz, a kipá ou o véu islâmico. As polêmicas e os processos na Justiça se sucedem em função dessas leis restritivas.

Na Europa, a França é o país que tem o maior número de cidadãos originários de cultura muçulmana. Mas numa população calculada em 6 milhões de descendentes de muçulmanos, apenas 1,5 milhão se diz praticante. Isso não impede que todos os fantasmas sejam alimentados pela extrema-direita europeia, que tem como princípio comum a rejeição dos cidadãos oriundos de países islâmicos. O novo fascismo encontrou o seu bode expiatório.

A menos conhecida das três religiões monoteístas, a mais distante da cultura europeia, consiste na revelação recebida pelo profeta Maomé entre 610 e sua morte em 632. O texto do Alcorão, no entanto, só foi escrito duas décadas depois da morte do profeta, cuja revelação era até então transmitida oralmente.

Para os muçulmanos, o Deus que o profeta revelou é clemente, misericordioso, al-Rahman e al-Rahim. Esta última significa também “útero”. O profeta é perfeito, o livro é sagrado. A comunidade de fé, Oumma em árabe, é ligada por uma fiel observância dos preceitos do livro sagrado, revelação de um Deus clemente e misericordioso. Como se pode matar em nome de um Deus clemente e misericordioso?

“Os que matam em nome do profeta não são verdadeiros muçulmanos”, repetiram em coro islamólogos em artigos ou entrevistas.

Segundo o filósofo Malek Chebel, autor de uma tradução do Alcorão e de um Dictionnaire encyclopédique du Coran (Fayard, 2009), assim como para os cristãos o Verbo divino se encarnou em Jesus, para o Islã esse Verbo se manifestou no Alcorão, concebido como um “depósito sagrado” que tem “as características de seu criador, a amplitude, a beleza, a majestade”.  
Para denunciar o clima de islamofobia que vem se espalhanado na França nos últimos anos, o jornalista Edwy Plenel, ex-diretor do Le Monde e fundador do jornal online Mediapart, lançou no ano passado Pour les musulmans (Ed. La Découverte). Seu livro analisa a banalização do discurso islamofóbico, que ele compara ao discurso antissemita dos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial, quando o bode expiatório designado era o judeu. Naquela época, o que se seguiu foi o genocídio de um povo, a shoah, como os franceses rebatizaram o holocausto dos judeus depois do magnífico filme de Claude Lanzmann.

Publicado em fim de 2014, o livro de Plenel critica os recentes livros e declarações de políticos e intelectuais que aderiram à deriva anti-muçulmana. Alguns deles chegaram a insinuar a superioridade da civilização cristã-ocidental, estabelecendo uma hierarquia das culturas e civilizações (o que Plenel chama de ideologia bárbara), totalmente inaceitável para filósofos, antropólogos e historiadores. Outros estigmatizaram os muçulmanos com um discurso que tende a apontar o Islã como um “problema francês”.

Plenel cita o relatório anual sobre o racismo, o antissemitismo e a xenofobia publicado pela “Commission nationale consultative des droits de l’homme” (CNCDH) que analisando o aumento da violência antimuçulmana em 2013 constatou: “Se comparamos nossa época com a que precedeu a segunda guerra, pode-se dizer que o muçulmano, seguido de perto pelo maghrebino, substituiu o judeu nas representações e na construção do bode expiatório”. Esse mesmo texto da CNCDH constatava que “o racismo sofreu uma profunda mudança de paradigma nos anos pós-colonialistas, com um deslizamento de um racismo biológico para um racismo cultural.”

Nesse sentido, a islamofobia exprime a repulsa e aversão à religião muçulmana e, consequentemente, aos muçulmanos em geral. A reflexão de Sartre no livro Réflexionns sur la question juive aponta, segundo Plenel, o nó do problema francês: a recusa em admitir o Outro como tal, a preocupação de assimilá-lo a si mesmo, a esse universal abstrato que não admite nem o judeu, nem o negro, nem o árabe, a não ser que ele se desfaça totalmente de sua história e de sua memória.


Leneide Duarte-Plon é jornalista.
Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar (Ed. Civilização Brasileira, 2014). Vive e trabalha em Paris.

(fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Alcorao-entre-desconhecimento-e-fantasia/6/32858)

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