Em
meus 30 anos de vida, pelo menos 15 dos quais muito atenta ao
noticiário político, eu nunca vi o Congresso Nacional trabalhar tanto.
Deputados e senadores varam a noite aprovando projetos de lei com uma
voracidade nunca antes vista na história do nosso parlamento.
Pena que esse afinco todo seja para fazer uma pataquada atrás da outra.
Nas
últimas eleições, duas bancadas ganharam uma força extraordinária,
agora sob a liderança do presidente da Casa, Eduardo Cunha, do PMDB
(suposto aliado do governo Dilma, mas na verdade o maior opositor de seu
governo e nome forte para a candidatura à presidência
em 2018, possivelmente contra Lula). São elas: a bancada evangélica e a
bancada da bala. Agem unidas, como irmãs siamesas, na aprovação dos
projetos mais obscuros.
Nosso
Congresso reflete a sociedade em que vivemos? Parcela dela, sim. Mas
não acho que a maioria dos brasileiros seja imbuída do pensamento da
vingança, do revanchismo, do fundamentalismo religioso,
da intolerância, misoginia e da homofobia. Por mais autoritária e
violenta que seja nossa sociedade, ela convive com tradições históricas
na identidade do brasileiro, bem resumidas no editorial do último
domingo, publicado pela "Folha de S.Paulo": "do sincretismo religioso,
da liberalidade sexual, do bom humor, da convivência com pessoas vindas
de todos os países e das mais diversas culturas, a prática do respeito,
da cortesia e do perdão".
Quando
começa a ganhar força, entre nossos legisladores e representantes
políticos, discursos de intolerância e ódio, ganham força também os
cidadãos, antes escondidos em seus armários, que, por exemplo, publicam vídeos
agredindo um frentista haitiano que veio se esconder da miséria e do
caos em nosso país -- um país tradicionalmente aberto a imigrantes de
todos os cantos do planeta.
Estou
preocupada, vocês não? Preocupada com esse Congresso, com essas
bancadas e, principalmente, com essa liderança de Eduardo Cunha.
Felizmente, não sou a única. No mesmo editorial da "Folha", registraram muito bem a preocupação do jornal paulista:
"Um
espírito crescente de fundamentalismo se manifesta, contudo, em setores
da sociedade brasileira -- e, como nunca, o Congresso Nacional parece
empenhado em refleti-lo, intensificá-lo e instrumentalizá-lo com fins
demagógicos e de promoção pessoal. (...)
Essa
aparência de progresso institucional se acompanha, porém, dos mais
visíveis sintomas de reacionarismo político, prepotência pessoal e
intimidação ideológica.
Tornou-se
rotineiro, nos debates do Congresso, que este ou aquele parlamentar
invoque razões bíblicas para decisões que cumpre tratar com
racionalidade e informação.
Condena-se
a união homoafetiva, por exemplo, em nome de preceitos religiosos e de
textos --não importa se a Bíblia ou o Corão-- que podem muito bem ser
obedecidos na esfera privada, mas pouco têm a contribuir para a
coexistência entre indivíduos numa sociedade civilizada e plural. (...)
Nos
tempos de Eduardo Cunha, mais do que nunca a bancada evangélica se
associa à bancada da bala para impor um modelo de sociedade mais
repressivo, mais intolerante, mais preconceituoso do que tem sido a
tradição constitucional brasileira. (...)
Uma
espécie de furor sacrossanto, para o qual contribui em grande medida o
interesse fisiológico de pressionar o Executivo, alastra-se para o
Senado. No susto, acaba-se com a reeleição e se altera a duração dos
mandatos políticos. O cidadão assiste a tudo sem sentir que foi
consultado.
No
meio dessa febre decisória, há espaço para que o Legislativo comece a
transformar-se numa espécie de picadeiro pseudorreligioso, onde se
encenam orações e onde se reprime, com gás pimenta, quem protesta contra
leis penais duras e sabidamente ineficazes. (...)
Os
inquisidores da irmandade evangélica, os demagogos da bala e da tortura
avançam sobre a ordem democrática e sobre a cultura liberal do Estado;
que, diante deles, não prevaleça a submissão."
CLIQUE AQUI para ler o editorial na íntegra.
O colunista Ricardo Melo, do mesmo jornal, publicou na segunda-feira no artigo "Estupro constitucional":
"Sem
consultar ninguém, deputados e senadores passaram a legislar
sofregamente sobre mudanças constitucionais. Sob a liderança do cruzado
Eduardo Cunha, o plenário da Câmara vota a toque de caixa modificações
que interferem no já limitado direito do povo de decidir os rumos do
país.
(...) No
clima de vale-tudo há sempre os puxadinhos habituais. Mais isenção de
imposto para seitas religiosas, refinanciamento a perder de vista para
caloteiros reincidentes e, aproveitando a onda, alterações na maioridade
penal e nos direitos trabalhistas.
Mesmo num país singular como o Brasil, tem-se a sensação de que certos procedimentos ultrapassam limites.
Cenas
como roedores invadindo uma CPI, "sindicalistas" exibindo nádegas em
galerias, gás pimenta contra opositores selecionados e o uso do plenário
para um culto ao obscurantismo mostram a rapidez da transformação da
Casa do Povo em autêntica Casa da Mãe Joana."
Melo
toca num ponto importante: a bancada da bala e a evangélica não
conseguiriam causar tanto estardalhaço não fossem também outras bancadas
poderosas, como a dos tucanos e petistas. Ou seja, ninguém no Congresso
está isento de culpa. Talvez uns dois ou três gatos pingados, que mal
conseguem falar nas tribunas.
O
que sei é que está difícil assistir a todo esse picadeiro sem ficar
enjoada. Só nos restam duas coisas: esperar pelas próximas eleições,
para tentar mudar esse quadro infeliz de Bolsonaros e Felicianos, e
torcer para que, nesse meio-tempo, os outros dois Poderes -- o Executivo
e o Judiciário -- consigam pôr um pouco de freio e equilibrar a
gangorra desse Legislativo que está mandando no Brasil com o peso de uma
bigorna maluca.
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